domingo, 16 de setembro de 2007

A balada insólita

Locação
Uma pequena cobertura em um prédio antigo, com cara de anos sessenta, no centrão de São Paulo, em um dos cruzamentos da Avenida São João.
O elevador demora para subir os vinte e dois andares e faz um barulho constante e irritante.
A porta abre e dá para uma salinha pequena, dois sofás com mantas, já bem gastinhas, uma estante pequena com uma televisão. Na paredes, gravuras de nus masculinos, no quadrinho na frente do banheiro, um desenho em naquin de mais um homem nu. Na cozinha bem pequena, um imenso painel de preço de padaria.
A janela imensa que dá para um terraço. Para se pular a janela, uma escadinha baixa, somente dois degraus, e para descer do outra lado, pisava-se em um banco. Um espaço maravilhoso e inimaginável.
Logo de cara se via o Minhocão. À direita, a Estação da Luz toda iluminada. À esquerda, lá longe, as torres da Paulista.
São Paulo toda iluminada pelas luzes da madrugada e, no terraço, uma festa de arromba!

Personagem principal

Estava ali e nem sabia como. Uma amiga, falou que a amiga dela tinha um tio cineasta que estava dando uma festa de aniversário conjunta e que era para todo mundo ir.
A personagem principal estava exausta pro três dias de balada forte e por ter acabado de fazer a terceira tatuagem. Ou seja, estava com o rabo queimando porque fazia menos de três horas que tinha sido espetada por horas.
Mas o samba-rock que tocava obrigava seus pés a se mexerem, mesmo contra vontade. Já pisou no terraço sambando e, milagrosamente, uma cerveja surgiu em sua mão.
Estava impressionada com a quantidade de gente que entrava no local. Não parava de chegar gente! E gente dos mais variados tipos.
Vestia uma camisa lycra preta, manga 7/8, uma saia branca que ia até o pé, sapato de verniz de bico redondo e salto largo. Xale rosa forte sobre os ombros. Cabelão ventania. Perfume de Belém no pescoço.
Nas costas , lá em baixo, dava para ver exposta a tatuagem recém-feita e ainda úmida e um ridículo curativo de plástico e fita crepe. Quando sambava ouvia-se o barulhinho do plástico. Nhec, nhec, nhec.
É pelo seu olhar que tudo aparece. Enquanto dançava, observava tudo e todos à sua volta.


Coadjuvantes

A amiga - Exausta de outras baladas acumuladas e ainda um dia puxado dos ensaios do teatro. Vestia botas, meia cinza, saia preta e blusa de tecido. Duas maria-chiquinhas. Bolsa colorida. Resistia bravamente ao cansaço e insistia em mexer o corpinho. Foi embora antes do final porque estava quase caindo de sono e levou junto duas das moças. Nem chegava aos trinta anos.

A amiga sobrinha do tio - Conhecida naquele dia. Arquiteta. Amiga de minha amiga. Loira, de riso frouxo. Bata, calça jeans e sandália baixa. Nova também.

O namorado da amiga da amiga - Careca, baixinho, meio fortinho, boa praça demais. Chegou arrastando toda essa mulherada e estava todo orgulhoso disso. Jens e camiseta, mas com um sapato muito transado. A careca dava a impressão dele ser mais velho, mas não devia ter trinta anos. Nem faço idéia em que trabalhe.

A Outra amiga da amiga - Era atriz, virou cantora. Engraçada e espirituosa. Olhos atentos e falava o que vinha na cabeça. E todos riam muito com seus pensamentos. Um short tipo macaquinho com um casaquinho jeans por cima. Sandália baixa. Vinte e cinco, vinte seis, no máximo. Uma das que foi embora mais cedo.

A amiga da amiga da amiga - Cineasta. Veio porque poderia ser interessante travar contato com outro cineasta. Não conhecia ninguém ali, além da sua amiga. Estava meio deslocada e não sabia ao certo onde colocar as mãos e ara onde olhar. Calça, camisa e uma botona exótica. Vinte e três?

A Japa - A Japa era amiga de todas ali. Linda, com cara e postura de modelo. Charmosas mechas loiras. Niponicamente comportada. Arquiteta também, mas hoje trabalhava com designer. Usava um espartilho preto por sobre a camisa branca. Chiquérrima. No máximo vinte e sete.

O bofe da japa - Novinho também. Calmo, discreto, com cara de paulistano, mas sem ser careta. Um jovem paulistano que não é careta. Com o uniforme masculino. Tênis sujinhos.

O músico - Quase um encosto na vida da personagem principal, de tão próximo. Seu companheiro das esbórnias musicais e etílicas. Chegou depois pois estava tocando e foi direto para lá, depois do trampo. Emendado de muitas baladas e serviço, todo estrupiado, mas já entrou dançando na festa, mesmo sem nem saber o que estava acontecendo ali. Calça de brim, camiseta de manga longa e sapato bicolor. De cara, adorou o ambiente. Dançou com seu estilo próprio causando gargalhadas incontroláveis na personagem principal, que tentava imitar mas a saia comprida atrapalhava.
Ironicamente, os dois tinham receio de se aproximar da sacada. Um medinho besta de altura.

As figuras exóticas

O Tio da amiga da amiga - Um coroa galego, cabelo grisalho, pouca barriga, camisa de tecido com botão, calça toda moderna. Uma correntinha justa no pescoço. Bem alegre já, todo suado e animado com tanta mulher que sua sobrinha levou. Passou uma cantadinha discreta na personagem principal, quando esta foi a presentada a ele. Mas parou naquele exato instante que já é uma cantada descarada. Saiu sorrindo e deu uma piscadinha sacana.
Estava comemorando cinquenta e um anos e aquele apartamento não era dele.

O dono da casa - Uma bichona negra, com mais de um metro e noventa, toda sorridente e sambante. Bicha que samba com ombrinho, sabe como é? Requebra as cadeiras em um ritmo e os ombros em outro. Forte para cacete que me lembrava demais Madame Satã. Viado, mas passava a impressão que se ele precisasse crescer para cima de alguém, ele machucaria. Impressionante como a pena que ele colocou atrás da orelha não caía quando ele sacudia a cabeça.

O cadeirante - Um negão paraplégico que tava muito doidão dançando na cadeira de roda. Um dos maiores ombros que ja se viu na vida e seus braços super torneados contrastavam com as perninhas magras e atrofiadas. Tinha tomado todas e ainda fumado uns back que rolavam soltos por lá. Dançava sempre com alguma mulher e seus braços fortes faziam as mulheres quase sairem voando quando ele virava. Conforme a noite evoluía, ele ia perdendo mais pontos na carteira de motorista. Não caía de bêbado porque já estava sentado. Balançava bastante para os lados, mas não saía da cadeira. Estava atropelando todo mundo e, não safisfeito, tentando passar a mão na bunda das mulheres. Mas passava a mão dando um puta de um tapão, de baixo pra cima. Além do susto, devia doer aqueles tapões. Tava o cão, o cadeirante. Em um determinado momento, conseguiu meter a mão na bunda da sobrinha do tio. Esta, muito puta da vida, gritava com ele e xingava " seu bobo, seu...seu....seu besta!" e ainda tentava dar uns tapinhas de mão mole no cadeirante, que tava era muito louco e nem tava sentindo tapinha nenhum. O namorado da sobrinha do tio, como todo baixinho, cresceu pro lado do paraplégico. Olhava muito feio. A personagem principal falou pro Músico que era melhor ir lá segurar o baixinho porque se ele meter a mão na cara do moço na cadeira de roda, a gente tava era fudido, íamos apanhar muito, porque até explicar que o cara da cadeira meter a mão na bunda, ninguém ia acreditar e minoria tem sempre gente pra defender, vamos segurar o baixinho!
Segura o baixinho.
Pensa-se na situação e é decidido que se daria um jeito de travar a cadeira de roda em algum lugar. De cara para uma quina de tão chato que o cadeirante estava.

O Ex-Hare Krishna - De repente entra saltitando como uma libélula, uma criatura com o penteado dos hare krisnas, uma calça bichérrima, um lenço preto enrolado no pescoço, não dançava porra nenhuma, mas aqueles pés eram rápidos demais. Magrelo de ver os ossos. Tocava castanholas tentando acompanhar o samba-rock.

O Ciganão - Careca. Cavanhaque e dois brincos de argola. A camiseta sem manga, tipo mamãe-quer-ser-gay, mostrava a tatuagem no braço malhado. No pescoço, todo enrolado, um echarpe preto. Olhar de abutre, meio malandro, meio cafa. Um sucesso de homem que deu um certo calor em certas mulheres presentes.

O casal de negros- Ele e ela perfeitos dançando samba rock como negão dança samba rock. Juntinho. A coreografia perfeita. Ela linda, alta e voluptuosa. Ele, elegante omo um príncipe.

O sambista - Outro negão que era a cara do seu Jorge, inclusive o cabelo, mas pequenininho. Batia no ombro da personagem principal. Sambava miudinho, cheio de ginga, dando aqueles breques dos sambistas verdadeiros. Malícia no movimento discreto. Dançar com ele era estar em um outro nível, incomparável. Não falou uma única palavra e sorria com os olhos.

A Pomba-gira - Uma mulher vestida com um longo todo cheio de listras grandes e largas, todo colorido. Estava possuída, certamente.

A bibliotecária - Era conhecida do bofe da japa porque trabalhava na biblioteca de sua faculdade. Foi encontrada, meio desfalecida, sentada no colo do negão da cadeira de roda. Mal balbuciava seu próprio nome. Estava amaaaaaaaaaaaaando a festa...

O Gringo 1 - Cara vermelha, ralos cabelos e completamente despenteados. Uma camisa de tecido, aquelas com cara de camisa de gringo, e bermudas. Holandês que falava muito bem o português e ainda sambava direitinho. Não parou um só minuto. Sambava indistintamente com homens ou mulheres. Sambava sorrindo e feliz, mostrando dentes manchados de nicotina. Fumou tanta maconha que receava-se uma levitação por parte dele.

Gringo 2 - Um senhor serérrimo. Boina de feltro que combinava com o casaco pesado e a gravata borboleta. Um leve sotaque que atribuiu-se à Itália. Houve divergências. Encostado na sacada, ele observa tudo com um leve sorriso nos lábios. Uma coroa bem doida agarrou ele e puxou pra dançar. O começo foi difícil, mas depois que esquentou...perdeu a boina.

O Nono Encontro da Quase Terceira Idade - Um grupo. Várias senhoras já gordinhas. Coroas animadérrimos sambando ao som de Jorge Bem e Tim Maia. Muitos. Embriagados de dança.

O moderninhos - Aquela tribo que os homens usam até lápis preto no olho. Tinha um cara com uma camisa de tecido preta cheio de bolas brancas. Fashion. A moça que veio com a camisola de cetim e de coturno. O outro com um alargador de orelha que eu colocava o pulso lá dentro. Muitos acessórios na cabeça. Boinas, lenços, bandanas.
Em um momento passa pelo Personagem Principal, pelo Músico e pelo Gringo 1 uma figura com uma camisa de tecido brilhante, toda preta, estampada com uma figura de mulher-diaba pegando fogo. Na mesma hora o Gringo diz com seu sotaque particular:
-Esse aí foi no inferno e trouxe um sovenir!

Os politizados - Camisa da cut, viva cuba, anarquista, essas coisas todas. Sambavam do mesmo jeito e felizes porque ali havia uma igualdade real entre todos. E nunca faltava cerveja. Não revindicavam nada.

Os skatistas - Bermudão caindo da bunda. Conseguiam ficar pulando da laje para o chão, do chão para a laje. Pareciam algum tipo de mico pequeno e irriquieto.

A bacia de jabuticaba. - Só negão. Dançavam entre si e arrasavam nas coreografias causando um verdadeira inveja nos branquelos que observavam. Uma negra gorda e linda com o maior cabelo black que eu já vi na vida. Loiro, obviamente.

As sapas - Um grupo coeso que não sambava muito. Delicadas meninas com camisa branca, por dentro da calça jeans, cinto de couro e botina nos pés. Uma de saia, muito da serepele, levava beliscões de sua acompanhante por rebolar demais naquele lugar. A moça nem ligava, apesar dos beliscões. Recebeu essa também uma passada de mão do cadeirante.

Os universitários - De ciência da computação até museologia.

Situação
Uma puta festa, com música de primeira, bebida free, onde estranhos invadiam a casa de um negão que estava indo morar em Portugal. Três aniversários comemorados também naquele mesmo dia. A mais linda vista de São Paulo. Ficaram até as quatro da manhã e as pernas da personagem principal ainda tremiam quando entrou no carro, para voltar, ainda naquela mesma madrugada, para Campinas. Cada personagem comentado e cada situação " rida" outra vez.
A paradinha de sempre no posto para comer aquele sanduba porreta com chocolate quente.
Quando chegou em casa, o dia já claro, não acreditou no que viveu. Só mesmo uma cidade como São Paulo para se presenciar uma situação dessas onde tantas tribos estão no mesmo lugar e na mesma hora.
Delícia.
Dormiu reclamando da dor na tatuagem nova, mas depois que encaixou na posição correta e indolor, só acordou ao meio dia.
Uma pena veio grudada em seu xale e ela guardou com carinho dentro da caixinha de biju.

8 comentários:

Unknown disse...

Nossa, que nojo! Odeio lugares assim. Sinto cheiro de teatro barato há quilômetros de distância.

Tatiana disse...

Você e um velho caquético, Bruno

Anônimo disse...

Sampa é Sampa. E cada um com seu cada qual. E há lugar para tudo e para todos nesse mundo. Que o digam os milhões de tribos e seus teatros. Sejam bons ou ruins. Mas, como a vida é uma só, que ao menos o sejam... Cuide-se. E cuidado principalmente com as alturas. Vou tentar ir ao lançamento do DVD.
Ronaldo Faria

Anônimo disse...

Tati, q vontade de ter ido!
Ponha várias tribos reunidas no bom astral, adicione música de prima, shiva descendo no terreiro, birinaites e outras cositas más, alegria, doideira, tesão e porra loquice e está feita uma verdadeira FESTA.
Adorei o detalhe da bicha enorme dançando com o ombrinho. E o cadeirante quizumbeiro, atolando a mão em todo mundo é demais...Rá!
Cá entre nós,só em Sampa que vista de cima à noite, é linda.
Te garanto que meu Zé Pilintra, todo de linho branco, dava um jeito naquela Pomba Gira. Mas só ia pros finalmente se fosse uma Pomba-Gira Rainha. As outras só levo no charme, rs... Sem nunca fechar a janela, mas sem abrir a porta, rs...
Me convida na próxima? Convida vai...
Me chama que eu vou, sonho meu...

Marina F. disse...

Tati, desculpa ter ido embora, estava acabada. Mas também adorei a balada, gente de verdade.
beijo pra ti,

Unknown disse...

a balada foi animal!
:)
mesmo com a mão do cadeirante na minha bunda....

Tatiana disse...

Zé ( apelido carinhoso para Zéfiro)

Eu não poderia convidar porque eu não fazia a mínima idéia que eu acabaria a madruga de sábado lá!
Fui levada pela circunstâncias...adorei...

Anônimo disse...

Adorei o relato, Tati! Deve ter sido divertido mesmo, hein! Putz, eu sou uma carioca atípica: eu gosto de Sampa! Hahahaha!
Mas quer saber onde mais tem esses lugares com um monte de tribos diferentes? A Lapa, aqui no Rio!
Enfim, lembrei do Renato Russo: festa estranha com gente esquisita... rs!