sábado, 21 de novembro de 2009

19 de novembro de 2009
Saindo de Petrolina.

Uma das coisas que mais me interessou nessa viagem foi a possibilidade de conhecer gente diferente, ouvir as histórias do povo , perceber os sotaques, interagir.Tem gente interessante demais nesse mundo, isso é um fato.
Pensei que teríamos mais tempo pra isso e me enganei. É tudo meio corrido. A correria é tanta que nem dá tempo de sentir saudade. Mas, por outro lado, conhecemos de forma profunda as pessoas que viajam conosco. Sempre disse que a melhor forma de conhecer alguém é viajando junto. Os chatos se revelam e viajar com chato é uma tremendo exercício de paciência e auto controle.
Nosso grupo é grande e subdividido.
Nós, os músicos, somos um tipo à parte. Os percussionistas são sempre os mais despirocados. É sempre o Cris e o Michel que ficam para trás e o Cris já foi abandonado e teve que se virar com um moto-taxi pra encontrar o povo. Não sei o que acontece. Acho que é excesso de vibração no corpo que dá uma folga nos parafusos e eles ficam assim, doidões. Adriel é o animador da viagem, batucando na carroceria e instigando os outros a fazerem uma esculhambação rítmica. Cris sempre está longe de onde tem que estar e Michel é o faz-tudo. Três gerações de percussionistas. Cruzes.
O baixista, Beto, é o mais sussa, afinal sua namorada viaja junto ( Camila, responsável pelas projeções do espetáculo) e namorada sempre põe moral e, ainda, eles são uma dupla e se cuidam.
Eu e Aline somos a parte feminina, sensata e equilibrada. Nosso acordo é: se uma pirar, ficar doida, dar piti, a outra segura a onda, pede calma. Em casos extremos, pode dar na cara ou socar um chocolate na boca. A ala feminina da banda é mais serena, sendo a Aline muito mais responsável por essa tal serenidade. Combinamos que faríamos yoga todo o dia e descobrimos que só rola yoga se for um estilo novo yoga dentro de ônibus. Agradeço todo o dia por ela estar por perto. Eu me sinto confortável entre eles, a banda. Cris é meu amigo, meu parceiro. Sei que ele segura qualquer onda minha. Adriel é o mais novinho ( me lembra demais meu filho Lucas - ando maternal, percebe-se) e absolutamente abestallhado no mesmo estilo de abestalhamento que eu me transito. Ou seja, somos duas bestas que se dão muito bem. Ele foi meu par lá no Bodódramo e prometi que vou ensinar ele a dançar samba juntinho, já que ele acha que dança forró. Eu e Michel mantemos um relacionamento de tapas e beijos, muito mais tapas que beijos, as duas situações são metáforas. Na verdade somos dois adoráveis trogloditas que estão se conhecendo. Ele tem um repertório muito próximo do meu então ele puxa uma canção, eu respondo com outra, mando uma música cabulosa e ele sabe a letra. Assim vamos fazendo a maior cantoria dentro dos ônibus. Adoro essa fuzarca!
O povo do circo é outro povo. Outra relação com o corpo, com o palco, com tudo. Gosto desse povo e morro de vontade de me meter com eles, aprender algumas coisas.
Alan é o mais novo da turma com seus pueris 16 anos e ele também me desperta os mais profundos sentimentos maternais. Me chama de tia e eu tenho que me controlar para não dar uma de mãe chata. Guinho é uma magrelo que é o demo nas suas acrobacias aéreas. Uma expressão muito linda quando está em cena e nos faz acreditar que é fácil fazer o que ele faz. Natália é a diva circense. Uma mocinha de 24 anos, forte pra caramba e animadérrima. Nós duas nos demos super bem e ela é minha parceira para o forró que Deus há de nos provir. Juramos nos acabar em algum forró rústico e confraternizar com o máximo de pessoas. Essa dança promete.
O teatro traz a equipe fixa deles. São jovens atores que moram juntos, trabalham juntos e juntos cuidam do Teatro de Tábuas. Uma turma que trabalha muito e cuidam de todas as questões relativas à viagem.
Daniel está com uma luxação na mão,coitado, e mesmo assim faz o número do mastro junto ao povo do circo. Muito amor pela arte. O personagem dele é Jeremias, um velho cego. Ele usa uma peruca branca e uma barbona, muito da louca. No penúltimo espetáculo ouviram uma criança gritar, assim que ele entrou em cena: “ Nossa Senhora, que Papai Noel feio dos infernos!”. Esse é o Daniel.
Loi é uma negona, da minha altura, bonitona e careca. Seu personagem é a Serpente, prima direta daquela outra que ferrou com Adão e Eva. A diferença é que essa serpente tem uma meia arrastão, uma bota de couro vermelha, um colan também vermelho, uma maquiagem realmente infernal, tanto pra fazer como para manter na cara. Sua entrada sempre causa e é um tal do povo chamar ela de tudo que é nome. Em Petrolina eu ouvi uma mulher contar que o marido da prima queria porque queria ver o “demo”, queria tirar foto e tudo. Levou um tapão no pé da orelha e foi pra casa com seu demo particular, a esposa. Loi faz par comigo no quesito travecão. Uma das crianças me perguntou porque ela era careca e eu disse que foi piolho, uma infestação de piolhos muito agressiva que a obrigou a raspar tudo. A menininha ficou muito impressionada e, imediatamente, começou a coçar a cabeça. Eu também sofro desse mesmo efeito psicológico. É só ouvir a palavra “ piolho” que minha cabeça coça. É um dom conseguir acreditar nas próprias mentiras.
O Dú faz o papel do Juvenal, o irmão covardão do espetáculo. Viajar com ele é uma diversão à parte porque, de repente, ele encorpora um personagem. Eu tive a oportunidade de conhecer o “Velho”, ser absolutamente ranzinza, mal humorado que chama a Loi de “rapaz”, eu de “ baitola” e o Cris de “ ciganinha”. Me garantiram que os outros seres que habitam o Dú surgiram no decorrer da viagem. Espero ansiosamente.
André é meu Dom Quixote particular. Magrelíssimo e muito engraçado e ele faz o Cosme, o irmão destemido. Reclamou muito de ter que dividir quarto com um monte de marmanjo. Preferia estar no quarto das meninas porque o cheiro do ambiente seria bem melhor. Muito esperto, esse moço.
Vanessa é uma moça de câncer com ascendente em touro.Morena jambo, um espetáculo.Tô fazendo aqui a maior campanha para ela porque, sem dúvida alguma, dará uma excelente esposa. Tudo bem que quando está virada no estopô é uma ranzinzice só mas é um preço mínimo para se ter essa beleza de espécime feminino. Ela faz a Velha do espetáculo e eu penso aqui se isso não seria uma piada interna. Não sei, só sei que os interessados em conhecer essa moça limpinha, trabalhadeira, artística, super cuidadosa com as pessoas e com os seus, por favor, enviem emails com foto de rosto e corpo inteiro para meu email que está aqui no blog que eu repasso pra ela. Se rolar casamento, quero ser a daminha de honra. Com meu sandalião salto quinze porque eu peguei gosto pela coisa.
Suiara está nas vésperas do aniversário e vamos comemorar na estrada. Ela é do time que eu também faço parte: não despreza uma dança, um banho de rio, uma escapulidinha boa. Já vi tudo. Vamos nos acabar. Neste espetáculo ela está fazendo o número de circo e toda vez que eu vejo ela pendurada lá no alto me dá vontade de gritar :” Desce daí, menina! Você vai se machucar!”. Foi a única que eu não vi se machucar. Tem santo forte e isso é sempre bom.
Anybool ( escreve deste jeito doido mesmo e se pronuncia Aníbal...vai entender...) é o responsável pelos figurinos. Ele se realizou no meu figurino e eu disse a ele que podia fazer o que quisesse com minha roupa. Mostrar pernoca...pode! Meia arrastão...pode também. Foi ele que descobriu minha hiper super mega blaster sandália de traveco que eu amei. Hoje já acho que pode ter sido uma tentativa de me matar porque andar em paralelepípedo é coisa pra traveco experiente e eu ainda to me iniciando nesse negócio de me montar. Mas é ele que ajeita todo mundo e deixa a gente divinamente deslumbrante!
Temos ainda viajando conosco a Ana, fotógrafa, que tem uma das gargalhadas mais gostosas que eu já ouvi. Quando estávamos na piscina lá da pousada e o Cris e o Michel fizeram o número de nado sincronizado ela quase teve um treco. Aliás, o nado sincronizado merece uma maior explanação porque até agora foi o ponto alto, no meu ponto de vista. Os dois fizeram uma coreografia e ainda tiveram a manha de botar um ritmo de batucada, tudo dentro da cabeça. Eles desciam, subiam só com as pernas para cima, desciam outra vez, subiam fazendo um quatro com as pernas e saíam da água com um braço pra cima e aquela cara de nado sincronizado. Eu estava avaliando a criatividade da coreô, harmonia dos movimentos e senso de equipe. Tiraram nota 9,5 por causa de uma perna mais a baixo na hora do quatro mas a apresentação foi espetacular! Tanto eu desafiei os meninos do circo - eu já tinha me tornado técnica da equipe masculina de nado sincronizado - e devo dizer, cheia de orgulho de meus meninos, que os rapazes do circo amarelaram diante de tanto talento.
Voltando à Ana... Ela é responsável pelo registro fotográfico de toda a viagem e é ela que tem as melhores fotos, óbvio. Tô aqui fazendo marcação pesada pra ver se ela me passa algumas fotos de palco para que eu possa colocar aqui no blog.
Ninja, nosso japonês, é o cinegrafista e fica lá com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. Ontem passou horas registrando a montagem e a desmontagem. Não sei se isso é chato ou não, mas que ele vai voltar um japa negão, ah isso vai.
Temos ainda o fogueteiro Marcelo que a gente chama de fireman, foguinho, fogueteiro-mor, menos pelo nome. Ele deve achar a gente um povo muito do esquisito.
Nosso motorista é o Wellington, um negãozão-armário com cara de brabo mas no fundo é um doce. Hoje quando tomávamos banho no Rio São Francisco eu pude ver a alma de menino que todo homem carrega dentro de si. O “Motô” não é diferente. Nadamos felizes nas águas do Velho Chico e a brodagem se estreitou.

O Rio São Francisco é uma história à parte. Não me lembro de ter me banhado em suas águas e, se fiz, não devia ter a exata noção do que estava fazendo.
O São Francisco é imponente. Sua grandeza é muito maior do que eu pude ver, mas senti a força que ele tem. A água de um azul profundo, transparente ao ponto de ver detalhes dos dedos dos pés, temperatura perfeita,um abraço de gigante mesmo.
Me emocionei por estar no estado que meu pai nasceu, Pernambuco, dentro de um rio recheado de histórias, de força e de vida. Assim que entrei na água um banhista veio conversar e me mostrou a pedra onde tem a estátua do Negro D’Água, ser místico que mora no fundo do rio e aterroriza os pescadores para ficar com os peixes. As carrancas nas proas dos barcos são uma forma de proteção contra o Negro D’Água. Tenho uma carranquinha em casa e nunca soube que era por causa desse nego aí. Me fez lembrar a lenda do Boto, lá do Norte e eu fico aqui a pensar se a cultura popular não traz dentro de si mistérios que poucos entendem mas que muitos respeitam. Eu que acredito até em Coelhinho da Páscoa achei melhor, por garantia, pedir licença e sair das águas do maravilhoso Rio São Francisco de bem com todo mundo.
Todo meu cansaço, melancolia e cracas ficaram lá.
Viajo para Goiás mais leve e com a pele coberta pela benção do Velho Chico.

Nenhum comentário: