segunda-feira, 10 de novembro de 2008

mandinga de cozinha

Faz tempo que não faço isso.
Lavo as panelas de barro cobertas de poeira, como quem tira a poeira dos olhos e simplesmente olho o escuro.
Aqueço o vazio cheio de possibilidades. Assim, como quem aquece o futuro e espera.
Aprendi a esperar cozinhando. O tempo certo das coisas porque todas as coisas tem um tempo certo pra alquimizar.
Pico o ardido da cebola, meus ardidos todos, e ele chia como chia meu coração apimentado quando vê a hora de largar o ardor e se transformar em doçura. Os apimentados e ardidos, como eu, têm um doce muito peculiar e uma resistência natural em se tranbsformar de fel em mel.
A salsinha já foi verde e brilhante mas hoje está meio caidinha. Pego o que ainda serve e jogo fora o resto. A salsinha me ensina a perceber que algo já está velho e não serve para mais nada. Jogo muito mais no lixo do que uma salsinha velha. Por um segundo hesito mas percebo que é inevitável. Deixa ir embora, vai. E lá se vão minhas salsinhas velhas carregadas de passado.
Minhas ervas todas picadinhas na minha frente. Alecrim, por favor, limpe e me dê um gás maior. E ele, todo gentil, se esbugalha em odores e me serve seus sabororos serviços.
Gemo.
Salgo com parcimônia e doçura. Só um tiquinho pra esquentar o paladar.
Fecho os olhos e somente sinto.
Sento do lado do fogão e ouço a chuva que cai lá fora, a música boa que toca, o barulhinho da comida borbulhando.
A taça de vinho português nem pesa em minha mão e aquele vermelho profundo sou eu por dentro. Me bebo com delicadeza e, mais uma vez, me surpreendo com o gosto forte que estala em minha língua. Às vezes nem eu percebo como sou forte e me assusto com a possibilidade da ressaca.
No arroz lavado mil vezes, a prece.
No tempo de espera, a prece de olhos fechados e narinas atentas.
Cada coisa arrumada no prato é uma coisa arrumada em mim. Coisa pouca, é verdade, mas coisa minha.
A fumaça cinza de meu cigarro sobe e some, como sobem e somem meus pedidos aos céus. Eles vão para algum lugar e lá se transformam em borboletas e mariposas, quando doces. Dragões são os meus pedidos bravos que sabem cruzar grandes distâncias. Queima e purga. Lagartas são meus sonhos que eu acho impossíveis mas mesmo assim peço, despudorada.
Cada pedaço de alimento alimenta até a alma e é minha alma canta na cozinha de casa em noite de mandinga feminina.
Procuro a sobremesa e posso te garantir: não é hora de sobremesas. Acredite em mim.
Não é hora de sobremesas!

Um comentário:

Marina F. disse...

ótimo texto.
adoro você, sua bruxona do bem.
hehe.
bjks.