domingo, 26 de outubro de 2008

Guerra Santa

Em um dia desses eu ouvi de uma aluna que ela tinha parado de fazer capoeira porque o pastor da sua igreja disse que capoeira é coisa do demônio já que tinha tambor, tinha cantoria. Berrei um o que indignado, parei a aula, parei tudo e fomos conversar sobre esse negócio de que tudo que vem da cultura africana ter virado coisa do demo.
Outra se recusou a aprender a música " Canto de Ossanha"porque a letra falava " ..xangô me mandou lhe dizer".
Xangô é coisa do demônio.
Já se deram conta disso?
Os evangélicos radicais repugnam a marca do povo negro em nossa cultura e não estou falando somente dessa guerra santa contra as religiões afro-brasileiras. Falo da música, da dança, do folclore, de tudo aquilo que o povo africano nos dá em riquesa cultural e identidade.
Capoeira é coisa do demônio porque usa tambores. Tambor é coisa de cadomblé, coisa de macumbeiro. Macumbeiro é coisa ruim. É coisa do demo.
As lendas brasileiras, o Saci, o Curupira, o Boto, a Mula sem cabeça. tudo coisa do demo.
No mês de agosto pisei miudinho porque resolvi contar as lendas brasileiras para meus alunos e algumas mães reclamaram que eu estava ensinando coisas do demônio para seus filhos!
Saci agora virou demônio, minha gente. Monteiro Lobato deveria ter sido um adorador e o Sítio do Pica Pau Amarelo um antro de perdição!
E a cultura oral brasileira? Vai pra onde? E os criadores de Saci? O que são?
O samba, o gingado malemolente, a brejeirice brasileira...tentação do demô. Não pode sambar. Não pode sacudir o famoso e adorado "traseiro" da mulata brasileira porque a bunda deve ser coisa do demônio, atenta o homem, desvia de alguma coisa. A bunda brasileira é um pecado espiritual. A bunda brasileira é negra, vale lembrar.
Vá entender.
Dança e festa não são apropriadas porque esse deus aí não gosta de batuque, não gosta de mulata, de samba, de bunda, não gosta de riso, de gargalhada, de cachaça e de boêmia. Usa terno cafona, ouve música de gosto duvidoso com sotaque gringo e gorjeios de voz norte-amaricanos. Fornica, mas fornica dizendo que não gosta muito, pra procriar somente. E se goza, goza escondido com medo da culpa do próprio gozo.
Esse deus não é, realmente, brasileiro. É um deus branquelo, preconceituoso e doente do pé. Um deus chatérrimo, diga-se de passagem.
A cultura africana que veio para o Brasil nos navios negreiros é tratada como manifestação do coisa ruim. Então a fé tem que ser branca, alva, asséptica, silenciosa. Agressiva contra aquilo que é diferente.
Eu acho que todo mundo pode e deve acreditar no que bem entender. O exercício da fé é individual e, na minha visão, muito saudável. Acredite, apóie-se, dedique-se a que te faz bem e vá cuidar de sua vida. Se quiser passar suas sextas e sábados em reza profunda, em meditação, em sexo tântrico, em adoração à lua, ao pé de cachimbo...por mim! O final de semana é teu.
Eu não saio por aí querendo fechar templos budistas, nem igrejas católicas. Não maldigo Buda, Shiva, não quero que as pessoas parem de cantar " hare, hare krishna" e vendam seus incensos por aí. Para mim, cada um na tua e tá tudo ótimo. Antes com fé do que fé alguma.
Eu gosto do batuque. Eu gosto do samba. Gosto de negão. Gosto de contar as histórias que ouvi, das noites de lua cheia, das traquinagens do saci, gosto de saber que sou filha de Iansã e ela briga por minha cabeça com Yemanjá, adoro ler a mitologia africana, da mesma forma que adoro a grega. Gosto da miscigenação do meu país e, principalmente, me orgulho de dizer que minha pátria é reconhecida pela sua capacidade de respeito religioso, pela aceitação das diferenças.
Será que ainda é?
Cresci em Salvador que transforma a lavagem da escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim - sincretizado com Oxalá - uma festa religiosa e profana ao mesmo tempo. Gosto de tomar banho de pipoca porque isso é uma forma ancestral de se proteger meu corpo das doenças, culto esse diretamente relacionado a Omulu, o velho e bom São Lázaro. Aprecio essa riqueza cultural. Gosto disso porque é a cara do Brasil que é todo misturado. Portugueses , negros e índios fizeram a nossa nação. Depois uma galera veio chegando, italianos, japoneses, espanhóis, todo mundo se misturando e deixando um pedacinho de sua cultura natal em nós. Mas ainda é o trio primordial ( português-africado- índio) que faz a nossa identidade, que dá a nossa cara.
Por que só a cultura negra é assim tão maligna??
De onde surgiu isso?
Quem disse que Deus é europeu??
Quem afirma que tem cor de pele, que tem preferências entre a forma de se cultuar a sua divindade? Por que é a cultura branca européia que é a boa cultura?
Não entendo isso.
Não entendo tanto negro repudiando a sua própria história em função de crença religiosa.
Não é somente fé. É cultura popular. É a nossa história, nosso passado, nosso DNA cultural.
Eu não sou preta, nem mulatinha. Pra passar por morena jambo eu tenho que tomar muito sol. Não posso ser chamada de ariana, não sou branquela. E também não sou índia. Sou um mix. Sou cachaça com cajú. Sou quindim. Sou mandioca frita. Sou acarajé com coca-cola. Sou pato no tucupi. E muito me orgulho disso, da minha história, da minha linhagem mestiça porque eu sou o que sou.
Não entendo e não aceito essa forma de viver a espiritualidade, a necessidade de esmagar uma forma antiga e autêntica de viver a religiosidade, não entendo isso.
O que tem de tão ameaçador na língua africana dos pontos do Candomblé? O que tem de tão assustador em um caboclo de Umbanda? Em uma festa de erê?
Macumba? Medo de trabalho, de feitiço, da maldade? Pois eu sei que se pode fazer magia com um terço na mão porque magia é a capacidade de alterar a realidade atravez da intenção. Posso fazer isso usando qualquer língua, qualquer rito. Magia é magia. Bem é bem e mal é mal.
Mas não venham querer que eu mude a minha identidade. Eu sou assim: um tanto branca, um tanto bugra e um tanto negra. Sou Brasil da cabeça aos pés. E rezo assim, em três raças.
E eu, tanto Brasil que sou, não sou menor que nenhum outro, seja ele totalmente ariano, totalmente negro, totalmente oriental. Cada um tem suas caraterísticas, suas peculiaridades e é isso que se chama de diversidade. Sou como sou e sei disso.
Daqui a pouco vão dizer que o samba, que o chorinho, que o pandeiro, que o zabumba é coisa do demo porque tem preto no meio, que veio da negada, não presta. Toda mulher que sair de vermelho na rua será apedrejada porque está de Pomba Gira e Pomba Gira é coisa do demônio. Volúpia é coisa do diabo. Bundão sambando é tentação. " A partir de hoje as mulheres bundudas estão proibidas de sambar porque é coisa do demo". Que horror.
A imagem da Nossa Senhora já foi chutada e chamada de imagem horrorosa. Pode até ser uma estátua meio feínha, mas é a Nossa Senhora, é a Mãe, é a representação todas as deusas antigas. É Oxum, é Yemanjá, é Ceres, Deméter, é Isis. É a lembrança do culto à Grande Mãe que corre pelo tempo. É muito mais antigo que uma imagem de gesso. É o passado. Inconsciente coletivo da Humanidade.

Estou assustada com a empreitada dos evanlélicos contra a nossa cultura popular. Eles são organizados politicamente. São efetivamente ativos. Vão conseguindo espaço através do discurso de prosperidade e abundância. Sacodem a Bíblia Sagrada na cara do passado como se ela justificasse uma guerra santa dessas.

E a minha forma de luta é continuar brigando pelo direito à sobrevivência do Saci, da Iara, do Curupira, do samba, da bunda rebolante, do caxixi, do atabaque, da mandinga, do tambor de crioula, das cirandas, do coco, do jongo, das letras de Aldir Blanc, dos afro-sambas de Vinícius e Baden, do banho de pipoca, do abará com vatapá, da capoeira angola e regional, de Jorge Amado, Dorival Caymmi, de Pierre Verge, até da Mula sem Cabeça ,que eu não vou lá muitos com os cornos porque eu ouvi dizer que nas noites de lua cheia ela sai correndo de cemitério em cemitério à procura de cadáveres de crianças que foram enterradas sem ser batizadas e ,mesmo essa história ter chegado aqui através dos portgueses, e não dos africanos, eu não quero que ela morra.
Porque um mundo sem Mula sem Cabeça e Saci, sem cachaça jogada no chão pro santo, sem a malandragem do samba malaco, sem o carnaval, ah, meu filho, esse mundo é muito chato e sem graça. Tô a fim dele não.
Me deixa sambar! Me deixa cantar pra subir. Me deixa ser brasileira, vai!
Me deixa!

18 comentários:

Anônimo disse...

Nossa Tatiana! isto é matéria para jornal, sensacional, adorei. Se a coisa continuar assim daqui a pouco vai voltar a época das fogueiras. Você realmente é uma pessoa especial.
Beijos...e muito Axé!...

Anônimo disse...

Não sou anônimo sou Ninita, apertei o treco errado.

N. Calimeris disse...

Bom demais, nega! Lia e pensava nas minhas origens e raízes... Não sei da minha mãe, de onde vem. Sei que deve ter índio no meio. Mas, metade do dna vem da grécia e na grécia tem dança, tem alegria, festa. OW `Povo para comemorar, bons vivants de primeira. Eu gosto da brasilidade, do encontro entre tudo. Do respeito, embora já passei umas coisas. Ei, saudade de conversa. Um dia, teconto.

Rodrigo disse...

Fala Tatiana!

Faz tempo que não comento por aqui. Dessa vez resolvi mostrar as caras e dar o meu pitaco. A cada dia que passa estes palhaços evangélicos preconceituosos querem acabar com a nossa cultura tão linda e tão ampla. Eu não consigo entender isso, acho que é um misto de ignorância com falta de cultura. Jesus tem que ser branco? Deus também é branco? O deus deles é o único que presta? Lembramos que tudo que comemos e escutamos e vivenciamos tem a mão do negro. Não posso deixar de reparar nisso. E os indíos são o que? Sabe Tatiana eu sempre digo um povo que sempre foi massacrado tanto os indíos como os negros, conseguem fazer algo tão belo com suas religiões seus costumes, seus quarups. E os brancos que sempre viveram livres por ai fazem esta merda que se chama: evangélico? Eu não gosto deixo claro e a cada dia que passa eu tenho nojo deste pessoal, sim é nojo! Por isso não é ser humano isso é ser burro. Eu quero é que se phoda estes malditos, se eles em vez de lerem a biblia lesse o Povo Brasileiro do Darcy ou quem sabe o Raizes do Brasil entenderia melhor a nossa cultura, o nosso costume, e as nossas diferenças, pois pelo o contrária viveremos assim: uma país de terceiro mundo, racista e preconceituoso, como a todo momento tentam esconder.

Beijo

PS: E combinei com o Bruno de ir até Campinas conversar e visitar o terreiro do Pai Mario de Ogum.

Beijo

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Parece meio batido, mas, tu é linda mulé! Desculpe a intimidade mas, é assim q me sinto lendo seu blog, rs, intima de tuas realidades, dos sonhos como vc mesma diz. Escrevo coisas ainda muito confusas ainda, pra mim mesma... espero um dia ter essa clareza, esse fluxo na vida...

Namastê!

Tatiana disse...

Ninita,
Eu ainda me lembro da época das fogueiras!!!
Deus que me livre delas outra vez!

Tatiana disse...

Georgiana
Conte, conte!

Tatiana disse...

Rodrigo,
Eu ando reamente preocupada com isso.
De verdade!

Tatiana disse...

ô, Silvia
A lindeza está no solhos de quem vê, né?
Obrigadíssima!

Vivien Morgato : disse...

O olhar negativo dado às religiões africanas e afo-americanas não é privilégio dos evangélicos. Outas denominações cristãs, como os católicos, tb tem uma interpretação deturpada e racista sobre eles ( estou falando dos católicos reais, não dos católicos por osmose). Essa questão está calcada em um forte preconceito racial que faz com que muitos espíritas, por exemplo, se justifiquem, dizendo coisas como..."eu sou espirita, viu? não em nada a ver com macumba, tambor, aquelas coisas..." É uma bonita religião, mas que, por conta do racismo inerente no Brasil, se transmuta em "ciência" e se distancia da "macumba".
Eu acredito que misturar tudo na mesma gamela seja um grande equívoco.
Assim como misturar todos os protestantes na mesma gamela...também seja.
O protestantismo tem raiz histórica forte e teologicamente interessante e tem divergência.
Na medida em que vc joga todo mundo no mesmo saco ( protestantes históricos, pentecostais e etc), corre no mesmo equívoco que vc critica...cai no preconceito, gurua.
Assim, a resistência em relação às praticas da cultura popular
( lendas e etc) não existe em parte dos protestantes e existe em outras.
Eu acredito que a reação contra as religiões africanas e afro-brasileiras, como já disse, estejam calcadas fundamentalmente em um olhar racista, preconceituoso e excludente, que marca mais uma relação social e econômica do que religiosa.
Não vai enfiar sua amiga aqui ( protestante) na mesma gamela que os pentecostais...porque não vai prestar....
beijão.

Tatiana disse...

Vivien,
Eu não sei como definir os evangélicos que são xiitas. Sã só da Universal do Reino de Deus? São os do Renascidos do Sétimo Dia? Existem muitas igrejas e templos. Não sei dar nomes aos bois. Nao sei. Por isso os chamo de " evangélicos radicais", termo usado no texto.
Não coloco todos os evangélicos no mesmo saco, só os radicais.
Não tenho preconceitos, tenho observação. Nunca me incomodei com nenhuma religião de amigo. Tenho católicos, budistas, taoístas até protestantes, como você. Meu filho é ateu e eu não faço idéia como isso foi acontecer. Cada um na sua e está tudo bem.
Mas é " cada um na tua".
Não se ofenda com meu texto porque ele não é uma ofensa a credo nenhum, mas sim um grito de quem tem o direito de defender o que acredita.
Como os evangélicos radicais.
Cada um na tua.

Anônimo disse...

Tati,

OOOOOOONDE EU ASSINO?

Unknown disse...

Ficou ótimo. Muito bom mesmo. Foi vc que visitou meu blog (http://passodotempo.wordpress.com/2008/02/21/preconceito-religioso/#comments) mesmo, Tatiana? Ou foi outra pessoa quem recomendou este desabafo fantástico?

Bueiro para os intolerantes!

Tatiana disse...

Oi, Santiago
Fuyi eu não, mas realmente me preocupo com isso.
Vou ler seu blog.
Beijos

Unknown disse...

Bem, eu gosto mais do teu texto. É direto e despachado. kkkk
Alguém leu os dois e me mandou o link daki.

E vc será sempre bem-vinda por lá, apesar de que ultimamente só falo de cinema...

Bjs

Anônimo disse...

Os evangélicos promovem a discriminação da cultura africana, promovem uma perseguição política aos homossexuais, discriminam todos os outros credos... Isso é coisa de nazista, e eles ainda não se deram conta da barbaridade que estão fazendo.

Deputados como Waldir Agnello promovem perseguição POLÍTICA aos homossexuais... onde já se viu isto? E não me admira que pessoas como ele também promovam a destruição de templos de outras religiões, demonização da cultura africana etc...

Juliana disse...

Concordo, em parte, com o que você disse. Você está certa ao dizer que algumas religiões cristãs (protestantes, pentecostais, católicos... todos os tipos de cristãos, e não um determinado tipo) tem preconceito com coisas afro-brasileiras. Mas, mesmo que não tenha sido esse o seu objetivo, você de certo modo também pratica o preconceito religioso ao falar assim dos cristãos (repito, todos os tipos de cristãos, e não um só determinado). Você fala do meu Deus (sim, meu, pois sou cristã protestante) como se ele fosse alguém preconceituoso, coisa que eu discordo plenamente. Deus não é preconceituoso, as pessoas são. Deus quer sempre o bem dos outros. Nem todos que seguem determinada religião são preconceituosos só porque certas pessoas de sua religião são. Essas pessoas que são preconceituosas e seguem tal religião não devem ser 'misturadas' as pessoas que seguem a mesma religião e não são preconceituosas. É um tipo de preconceito seu falar mal de Deus, abertamente, onde qualquer cristão pode ler e se sentir ofendido (como eu me senti). Porém, mais forte que isso, é tipo de preconceito de qualquer um falar mal de qualquer outra pessoa por determinada coisa, por mais errada que a pessoa esteja. Devemos conversar antes e não sair praticando o preconceito. Devemos conhecer profundamente antes de 'fazer' o preconceito. E antes de você sair no desabafo com tudo, pense antes, pois a qualquer hora você pode estar praticando algo que tanto critica.