segunda-feira, 8 de setembro de 2008

troca-troca

Tenho vivido uma intensa troca de correspondência virtual.
Email's grandes e gordos como bunda de preta, cheios de parágrafos, sem economia de letras e virgulas.
Adoro. Simplesmente adoro.
Meu novo amigo de infância é o Armando Catunda. Fotógrafo por profissão, ex baterista, bebedor experiente e se gaba de fazer a melhor caipirinha do mundo. Coisa que realmente acredito. E está se revelando para mim como um cronista muito do bom.
Nossa correspondência é verborrágica, intensa e constante. Tem me alegrado os dias porque ele é como eu: gosta de escrever e ler mensagens longas, para serem aproveitadas com calma, degustadas diante do monitor do computador. Nada de mensagem telegráficas. Se é pra escrever, que se escreva direito, porra!
Desde que começamos é um troca-troca sem fim. Músicas que eu mando. Fotos que ele me manda. Textos dele. Textos meus. Um email que eu escrevi completamente bêbada, filosofando sabe-se lá em quê. Uma lista das coisas inesquecíveis dele.
E assim se solidifica uma tremenda de uma amizade boa, cheia de histórias engraçadas, gargalhadas pelo telefone, msn, skipe, o que der.
Mas acima de tudo, uma forma de conexão. Conexão de inspiração.
Muito lindo isso. Muito necessário isso.
Tomei a liberdade de colocar aqui seu último email, aberto assim que cheguei em casa após o ensaio dominical.
Bateu exatamente com o que eu vinha pensando.
Desculpe, Armando, mas eu não me contive.

NOS BARES DA VIDA


As três da tarde cheguei em um boteco pé sujo em uma pracinha no centro de S.Sebastião, fazendo hora para esperar minha mulher que foi ao médico. Em minha frente a farmácia e a Câmara Municipal com sua fachada do início do século passado. Ao fundo, Ilhabela.

Nas ruas aquele ritmo de total sossego que as cidadezinhas do interior tem em um dia comum de semana.

Estava de maus bofes. Pensei em relaxar derrubando uma cervejinha gelada. Só uma, pois na volta me esperava uma das estradas mais perigosas do estado e a levava na garupa. Na noite passada sonhei com uma curva onde perdia o controle da moto. Via que o final da pista se aproximava em alta velocidade, batia de lado na guia e voava sobre o abismo vendo as enormes pedras lá embaixo aonde em segundos iria me despedaçar. Ainda no ar, sem nenhum pânico, pensava:

- Meu Deus, me receba bem!

Mal me sentei no bar e na mesa de trás uma mulher começou a esbravejar com a filha adolescente. A menina estava chegando da farmácia e havia comprado o remédio errado.

- Eu falei para você comprar esta porra? Volta lá e pega o dinheiro de volta.

Tudo falado com aquele tom de voz que faz com que você queira se levantar e enforcar a vaca com seu próprio sutiã. Era chamada de Galega pela garçonete, uma crioula gordinha com cabelos rastafari.Tentei me concentrar em minha cerveja e descer um blindex antibaixaria.

Chegou um cara carregando um violão sem capa e sentou-se na mesa atrás de mim. Imediatamente pensei que meu sossego tinha acabado. Tudo que eu queria era um pouco da tranquilidade que a paisagem oferecia. Quis me levantar e ir esperar em um banco da praça. Não deu tempo. Atendendo a pedidos da garçonete, ele ataca. E ataca alto como se estivesse em um palco. Canta como um cigano louco, rouco, uma canção em italiano que parece dialeto. Para minha absoluta surpresa, gosto. Engata com Detalhes do Roberto. Então o bar já tem definitivamente um clima da antiga zona de Santos no meio da tarde.

A Galega como as feras foi amansada pela música. Senta-se na mesa ao lado um senhor com ar de comerciante do começo do século XX. Deve ser o dono da farmácia, pensei. Como eu começa a tomar sua cerveja com pequenos rituais que os bebedores solitários reconhecem entre si.

Nisso um tipo que beira a mendicância com a barba rala mesclada de grisalho em alguns pontos, usando camiseta, bermudas e chinelos de dedo e coberto por um velho e ensebado boné, pediu para o cigano:

- Posso dar uma olhada no violão?

Confesso que quando cheguei e reparei nele com seu ar de fracasso e sua cara de garrafa, bebendo uma coca-cola com visível desgosto, senti uma certa repulsa.

- Você já não está olhando? Responde grosseiramente o outro.

- Queria dar uma pegadinha nas cordas.

- Ah, você quer tocar, não olhar, tudo bem, pode brincar, mas cuidado com ele.

Ouço um dedilhado e o violão sendo afinado firme e rapidamente. Os primeiros acordes trabalhados com muito suingue por uma mão direita de gente grande. Floreia, brinca à vontade no instrumento e então uma voz bonita e forte enche a praça e encanta o bar.

Quando termina todos e o próprio cigano aplaudem:

- Puta que pariu, você acabou comigo!

- Bobagem, ninguém é mais que ninguém. Quem acabou comigo foi esta maldita coca-cola. Preciso tomar uma para tocar direito.

Pedido prontamente atendido. Meio copo americano de branquinha desaparece em dois goles. Ataca um Negue Que Me Pertenceu, de fazer puta chorar. Pára gente na praça. Já estou com a cadeira totalmente virada e sou parte da admirada platéia. Quando termina entrega o violão para o cigano.

- Depois de você não quero tocar mais.

- Bobagem, mete bronca. Dá mais uma, amor? Pede para a garçonete, agora fã assumida.

O cigano com os brios à prova, se atira e manda um Fio Maravilha da pesada. Dá tudo e faz o gol.

O violão volta para o velho músico que já derrubou a segunda marvada e avisa:

- Vou tocar uma de um cara que morreu mas não morreu muito.

Segura o pinho inclinadamente na diagonal para cima. Já é outra pessoa, o velho vencido que vi quando cheguei se evaporou. Agora os olhos brilham, ri como um moleque de dezoito anos. Está em casa. Arrasa com um Tim Maia lotado de molho. Sabe tudo. Tem voz para cantar sem microfone, tipo Caubi. Penso nestes cantores de barzinho que entram e saem sem que ninguém perceba.

Por que este cara não está na ativa?

- Você fez muita noite, não é amigo?, pergunto, enquanto ele faz sinal pedindo outra.

- Só trinta anos. Agora dei uma parada porque o conhaque estava acabando comigo.

Engata um Bezerra da Silva em Aqueles Olhos Verdes passeia por samba canções e boleros e termina com Como Uma Onda do Mar do Lulu, já acompanhado pelo bar todo e por umas velhinhas que passavam pela rua todas vestidas iguais de camiseta branca, sabe-se lá porque, que dançam e batem palmas.

O cigano pede desculpas mas tem que atravessar para Ilhabela e leva o violão. O Show Já Terminou. Despeço-me e agradeço pelo belo som com que ele nos fez ganhar o dia

Vou embora sabendo que o velho músico não tem forças para voltar. Já está bêbado uma hora depois de ter começado. Penso, envergonhado em minha cegueira ao sentar-me ao seu lado e ter sentido repulsa. Penso em Milton nos lembrando que todo artista tem que estar onde o povo está. Em como é difícil a vida de músico nestes tristes e alegres trópicos. Festa acabada, músicos, a pé... Penso em Cássia Eller, tão irmã deste e de todos artistas malditos, em sua via – crucis no meio de uma rua do Rio de Janeiro. Nunca mais vai iluminar uma tarde banal com sua arte poderosa e desesperada em um boteco pé sujo, onde devia se sentir muito mais à vontade do que recebendo o assédio vazio dos mauricinhos no camarim do Palace.

Na curvas da estrada de S. Sebastião, ouço Roberto ecoando, escoando pela voz dos artistas sem dono e sem trono.



É esse meu amigo Armando!

Show, né?

5 comentários:

Unknown disse...

hehehhe

imediatamente peguei meu Tim.

É show!

mamão

Anônimo disse...

SOU FÃ DELE, COMO FOTOGRAFO E DO QUE ELE ESCREVE.FOI GOSTOSO DE LER. VC TB ESCREVE ASSIM, TRANSPORTA A PESSOA.

Tatiana disse...

Pô, Maria
tô vendo que vc conhece o cabra, né?
ô mundinho pequeno esse...

Tatiana disse...

Mamão,

Acabei de ler a biografia do Tim Maia.
Vale à pena!

Anônimo disse...

ARMANDO É UM VELHO AMIGO.
MAIS OU MENOS 25 ANOS.
NÃO SEI COMO NUNCA NOS ENCONTRAMOS, EM SANTOS.
ADORO AS FOTOS E O QUE ELE ESCREVE, QUANDO ESCREVE.E SOU SUA FÂ DE CARTERINHA, VC ESCREVE MUITO.
BEIJOS