sexta-feira, 6 de junho de 2008

Cantoras Neuróticas

Quando abri o livro Canto - Uma expressão, de Tutti Baê e Mônica Marsola e li este prefácio que Guga Stroerter escreveu, eu simplesmente amei.
Explicar o que ocorre entre cantores e instrumentistas é uma coisa que não é fácil, mas o Guga faz isso com uma certa dose de humor e olhar muito agudo. Eu penso sobre isso e chego à mesma conclusão, apesar de não me achar neurótica, mas isso não vale porque eu nunca que me acharia uma cantora neurótica.

CANTORAS NEURÓTICAS

Por Guga Stroeter

A cantora Tutti Baê e sua colega Mônica Marsola escreveram um livro didático sobre técnica vocal. Tutti solicitou a Guga Stroeter que escrevesse o prefácio.

A presente publicação trata de expressão, canto e música. Bem sabemos que o ser humano expressa-se das mais distintas maneiras. Como também são distintas as definições do que é a música. Para Rilke, a música é o hálito das estátuas; para Schopenhauer, a música é pura vontade. Já o poeta e herói nacional cubano José Marti proclamou que a música é a alma do povo. Talvez essas visões não sejam antagônicas, mas complementares, e somadas contribuam nesse nosso delicioso debate filosófico. Outras colocações sequer suscitam polêmica, pois são verdades unânimes. Uma delas é o incontestável fato de que o ser humano em qualquer época, em qualquer cultura, gosta de música. A outra verdade fundamental é que todo cantor é antes de mais nada um neurótico. Eu afirmo isso de forma muito serena, pois na minha condição profissional de músico instrumentista, participo da guerra eterna entre músicos e cantores. Estamos cercados de apocalípticos por todos os lados, pessoas que anunciam por todos os meios a chegada eminente do juízo final. Nesse dia, num grande julgamento universal, num gigantesco Nuremberg cósmico, Deus resolverá definitivamente as querelas entre cães e gatos, entre corinthianos e palmeirenses e entre cantores e instrumentistas. Nós, os instrumentistas, chamamos os cantores de canários e relaxamos no palco escudados pelos nossos instrumentos. Sim, entre nós e a platéia existe um intermediário. Já o cantor tem o seu próprio corpo como emissor daquilo que é considerado o ponto dramático focal da apresentação. Melhor dizendo, toda a expectativa e toda crítica estão amarradas ao frágil gogó do canário. É principalmente por intermédio do cantor que os indivíduos do público se identificam dentro do processo dialético do fenômeno musical. Ora o espectador imagina a si próprio sobre o palco, pois tem a fantasia narcísica de ser o centro da afetividade daquela circunstância; em outro momento esse mesmo espectador adota como sua a poesia da letra cantada, e então a voz do cantor e do espectador unificam-se no imaginário. Por isso o erro do cantor ofende as emoções profundas da platéia. Não é à toa que os cantores tornam-se famosos e paranóicos e tem uma relação agonística com sua obra; enquanto nós, músicos hedonistas, rastejamos pelos cantos ruminando a frustração de nosso anonimato, contando ótimas piadas e maldizendo a mídia manipuladora e burra. Certa vez fazendo um show com um grupo de músicos amigos, convidamos uma cantora para subir ao palco e cantar conosco. Ela prostrou-se maravilhosa em frente ao microfone e então nós tocamos a introdução da canção. No entanto todos nós erramos, cada músico foi para um lado, erramos a harmonia e o ritmo estava indefinido. A platéia nem notou e lá estava a cantora, vítima de nossa incompetência, com um pé na canoa e outro na casca de banana, com a atenção da platéia convergendo para ela. Foram momentos num inferno onde ela sem dúvida pensou furiosa: "Músicos filhos da puta, vocês querem me derrubar!". Então ela cerrou os olhos e arriscou sair cantando na mais árida solidão e nós, claudicando, fomos encontrando o caminho das pedras e lá pelo meio da canção conseguimos nos acertar. Acabou a música e fomos aplaudidos de maneira convencional. Nós sorrimos, agradecemos e envergonhados no íntimo, fomos ao boteco beber e dar risada. Enquanto isso a cantora trancava-se no camarim e enfiava a cabeça debaixo da torneira arrependida de ter saído de casa."...

Sempre soube disso, mas é muito bom ver que um instrumentista confessa uma coisa dessas.

Muita bom.

PS: Dedico este texto a todas as minhas amigas cantoras, neuróticas ou não e a todos os músicos que já me acompanharam neste anos todos.

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