sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Sentido - meu algoz

O que eu faço com meu peito em brasa? Por que me arde assim, nas madrugadas, como fogueira abandonada às cinzas, aquela chaga alimentada pelo fogo que passou por mim, que já se foi e eu agora sou só brasa. Uma brisa ligeira me atiça as chamas e meu peito flamba em doces vermelhos. Meus doces vermelhos iluminam os céus e meus olhos míopes só vêem o agora.
O que faço com a pele? O que faço com essa memória que carrego na minha superfície, essa lembrança nos poros, esse cheiro trançado em meu cheiro? O que faço com as digitais em mim? Apago? Arranco?
Minha pele me aperta a alma e eu, gemendo, sufoco e peço que despregue de mim esse vício terrível de ser passado e lençóis. Minha pele se faz de surda e muda a direção do seu olhar.
O que faço com minhas mãos vazias e tão cheias de futuro? Meus dedos sonsos batucam na vida e eu rôo as unhas, meus dedos sangram e eu pergunto por quais cabelos penetrará no outro? Que madeixas perfumadas trançará meus desejos? Em que trilha, vergão na carne, indicará o tesouro? Onde rasgará a trama? Onde enfiará na carne?
Eu não sei, não sei.
E meus dentes travados? Onde meus dentes cravam? Por que, na minha boca, o desejo de sangue não desaparece como fotografia velha e amarelada e brilha assim, escorrendo pelos meus cantos, pingando de mim em imensas gotas? Tudo rubro. Tudo carmim. Pra mim tudo é só vermelho e carmim, é sangue, é vivo, é carne e sangue.
Onde escondo as minhas coxas mornas que cismam em tremer, em vascilar, minhas coxas perdidas, sem rumo, sem trilhas, sem mapas? Minhas coxas sem marcas de dedos, sem roxos delírios, sem arranhões, minhas coxas são só passado. Minhas coxas que não cabem em lugar nenhum , minhas coxas vazias de cinturas para enlaçar, minhas coxas sem par, minhas coxas lustrosas, minhas coxas sozinhas, minhas coxas macias e solitárias. O que faço com minhas coxas trêmulas e frias?
Eu não sei. Eu realmente não sei. Nada sei assim pensando.
Meus pés pisando um no outro. Para onde ir? Para onde? Para quê? Por que sempre ir? Mas mesmo assim sempre vão. Mas meus pés choram e eu nem ligo. Maltrato, judio só para que eles aguardem aquele instante que um toque macio e penetrante lhes arranquem suspiros. Meus pés se fecham em suspiros. Meus pés subindo pelas costas, meus pés escalando paredes, meu pés girando no espaço. Meus pés sendo lambidos. O que faço com meus pés cansados e não mais lambidos?
E esse cheiro que chega do nada em mim? Me sobem vapores, me invadem a cabeça, me atordoam o pensamento, esse cheiro lembrado, esse cheiro invadido, essa ameaça de baixo do meu nariz, essa loucura na língua, esse odor grudado na narina, um rabo de cheiro, um dragão no ombro. Esse cheiro que eu lembro no travesseiro, na peça de roupa, no meio do dia, esse cheiro caçado, pego no ar, esse cheiro escorregadio. Minha loucura é esse cheiro.
Tantos salgados no corpo, cada curva um gosto, eu lembro, eu me lembro do gosto na boca, dos doces, do fel, do ardido, do gosto morno me enchendo a boca, minha boca ainda se lembra de todas as cores desses gostos todos. Minha boca aberta é um imenso deserto.
Meus ouvidos trincam com tanto silêncio. E os gemidos? E as agonias em tom menor? E os gritos perdidos? Para onde vão meus gritos perdidos? E aqueles outros que não me arranharam o ouvido? Para onde vão meus ais, meus sins sussurrados, minhas tempestades, meus trovões, os outros sons, a voz no meu ouvido, entrando em mim pelos ouvidos, me arrepiando a nuca, a respiração cansada, eu lembro, meus ouvidos surdos, os sons batendo no corpo e eu ouvindo, por cima da muralha do corpo, meus ouvidos derretem e somem.
Quanto silêncio há em meus ouvidos.
Mas eu ainda me lembro. Eu me lembro.
O que faço com esse corpo todo de mulher que é brasa, que é memória, que é traçado, que é rabisco, que é pano tingido, que é trama de linho, que é grave e profundo, que é imenso e quente, que nem é meu completamente, que não é de ninguém?
O que faço com esse corpo que lembra, que imagina, que cria, que borbulha, que escalda, que mistura, que chamega, que escorrega, que esquece, que sempre recomeça?
O que faço de mim que sou só sentidos? Sou só sentidos que doem, que lembram, que suam, que escorrem por meus vãos, que descem e sobem de mim, que me futucam por fora, por cima, por baixo, por dentro.
O que faço com aquilo que nem sei direito o que é?
Eu só vivo e sinto.
Fecho os olhos e sinto.
Inspiro fundo e sinto. Abro os dedos e sinto.
Me calo fundo e sinto.
Lambo a vida e sinto.
Eu sinto! Sinto! Sinto tanto que eu sei que sinto muito.
Desculpe, mas eu não sei assim tanto de mim.
Eu só sei que sinto muito.
Eu sinto muito.

8 comentários:

Anônimo disse...

Eu já esqueci você, tento crer
Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer
Sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão
Cor vermelha, carne da sua boca, coração

Eu já esqueci você, tento crer
Seu nome, sua cara, seu jeito, seu odor
Sua casa, sua cama, sua carne, seu suor
Eu pertenço à raça da pedra dura

Quando, enfim, juro que esqueci
Quem se lembra de você em mim, em mim
Não sou eu, sofro e sei
Não sou eu, finjo que não sei, não sou eu

Sonho bocas que murmuram
Tranço em pernas que procuram, enfim
Não sou eu, sofro e sei
Quem se lembra de você em mim, eu sei, eu sei

Bate é na memória da minha pele
Bate é no sangue que bombeia na minha veia
Bate é no sangue que borbulhava na sua taça
E que borbulha agora na taça da minha cabeça

Memória da pele
João Bosco & Waly Salomão

Foi do que me lembrei, lendo seu texto... Além disso:

As suas mãos, onde estão?
Onde está o seu carinho?
Onde está você?

Se eu pudesse buscar
Se eu soubesse aonde está
Seu amor, você

Um dia há de chegar
Quando, ainda não sei
Você vai procurar
Onde eu estiver
Sem amor, sem você

Suas mãos
Antônio Maria & Pernambuco

Vixe, deprê demais,né?
Mais uma na maré razante...
bjo gde,
Clé

Anônimo disse...

errata: ops, maré vazante, não "razante"... e, se fosse, seria rasante (de rasa). Ah, língua portuguesa!

Anônimo disse...

mas é exatmente isso.
é essa memória da pele que me ferra a alma.

Anônimo disse...

Isso me parece o bom e velho tesão!!

Anônimo disse...

"O que faço com aquilo que nem sei direito o que é?"
Adorei. Adorei.

Anônimo disse...

Onde escondo as minhas coxas mornas que cismam em tremer, em vascilar, minhas coxas perdidas, sem rumo, sem trilhas, sem mapas? Minhas coxas sem marcas de dedos, sem roxos delírios, sem arranhões, minhas coxas são só passado. Minhas coxas que não cabem em lugar nenhum , minhas coxas vazias de cinturas para enlaçar, minhas coxas sem par, minhas coxas lustrosas, minhas coxas sozinhas, minhas coxas macias e solitárias. O que faço com minhas coxas trêmulas e frias?


ETA LASQUEIRA, Sô

Anônimo disse...

a pior memória é a da pele pois ela não pensa, só reage.
a memória da alma ainda dóis mais, posrém sabemos que valeu à pena.

Anônimo disse...

Adoro esses textos assim, despudorados, desnudos.
Adoro mesmo.
Imagino que tipo de mulher é essa, como é em carne e osso, se ela é assim também na vida real ou só se liberta na distancia da tela do computador.
Penso aqui se me causaria o mesmo arrebatamento caso eu me deparasse frente à frente.
Diz que canta. Será que canta tão exposta assim? Será que consegue tocar as pessoas com a voz da mesma forma que me toca quanto a leio?
Como será essa mulher que se esconde, fingindo que se expoe.
Também não sei de nada.
Mas confesso que eu também sinto.
Sinto muito.