domingo, 17 de dezembro de 2006

A Rainha e o Guerreiro

Era uma vez uma Rainha de um reino antigo que governava seu reino com cuidado e atenção. Seus olhos eram agudos, sua mão firme e seu coração morno.
Um dia apareceu um jovem soldado oferecendo seus serviços na guerra e na guarda. A Rainha o aceitou porque olhou dentro de seus olhos e viu coragem, percebeu a força de seus braços, sua disposição e alegria diante da batalha.
E assim o Soldado se juntou à sua guarda pessoal e a vida continuou correndo entre sangue e festas, batalhas e curativos. Era mais um entre tantos e fazia seu trabalho como os outros.
Mas a Rainha era sábia e sabia que não devia acreditar somente em seus olhos e um dia resolveu tirar sua coroa de brilhantes, seu manto púrpura e voltar a vestir sua túnica mágica, abrir seu armário, colocar seu atame na cintura e olhar para dentro do seu Espelho Mágico.
A Rainha-Bruxa voou pelos campos, seguiu seu exército e viu seus homens em batalha. Olhou dentro do coração de cada um para saber se estavam lutando com honra e dignidade.
Qual foi sua surpresa ao perceber que seu novo soldado tinha uma sombra dentro do peito, uma macha escura e sombria e ela resolveu ir mais fundo.
Sentou-se no galho mais alto de um velho sabugueiro e esperou que seu Soldado adormecesse e o levou, em sonhos para uma caverna mágica.
Ali a Rainha-Bruxa deitou o jovem soldado e com seu atame abriu seu peito e tirou seu coração. Cortou seu coração na metade e de dentro dele escorreram a coragem, a determinação, a força. Mas também cairam de dentro do coração do soldado a covardia e a crueldade. A crueldade que nasce da covardia. O pior tipo de crueldade, ao seu ver.
A Rainha olhou no fundo daquele coração oco e suspirou.
Começaram a aparecer imagens de outras batalhas, o soldado cortando corpos sem piedade, pelo impulso do movimento, o braço que descia matando mulheres , crianças e velhos. Um braço que não obedecia o cérebro. Um cérebro que não sabia pensar e dizer não, sabia que não devia fazer daquela forma mas, mesmo assim, não resistia ao impulso assassino. Era a covardia ali. A covardia de não saber ser honestamente guerreiro.
Matar doía para aquele soldado, mas ele não sabia ser outra coisa, além de soldado. Cada espada enfincada no peito de outro doía nele, mas ele não sabia parar e se acorvadava da sua própria natureza. O Soldado não suportava o olhar que antecede a morte, não suporta os gemidos de dor, mas apreciava a emoção da guerra, da conquista, do seu sangue quente borbulhando, a mão na espada, seu braço girando em círculos no ar. Matava pelo prazer de matar mas não suportava a culpa que isso lhe causava.
E aí só sendo muito mais cruel do que o necessário ele conseguia segir seu caminho. Para fingir que não doía, para se proteger da dor, para que ninguém chegasse perto dele e visse como ele chorava sozinho no meio da noite ou entre as saias surradas da velha negra, sua única aliada. Para que ninguém percebesse que seu corpo era forte mas seu coração era frágil e delicado.
Uma pena, pensou a Rainha-Bruxa.
Por detrás daquele guerreiro adormece um ser covarde e cruel que não sabe evitar o golpe, não saber negar o gesto dolorido, não sabe partir para uma luta que ele acredita. Não sabe olhar no olho da morte alheia. Não sabe, não sabe, não sabe tantas coisas ainda, por ser tão jovem, tão forte e tão imaturo.
E assim, por onde passa, derrama sangue e lágrimas mais do que o necessário.
Pegou aquele coração oco e recolocou dentro dele a força, a coragem e a determinação. Também recolocou a covardia e a crueldade. Costurou com muito cuidado, usando seus fios de cabelo para fechar o corte. Ajeitou esse coração remendado dentro do peito, lavou seu corpo com sal e ervas, perfumou seus cabelos, beijou seus olhos e o levou de volta para o campo de batalha, onde seus companheiros ainda dormiam. O deixou ali, adormecido, o peito vasculhado mas ainda com o mesmo peso de sempre.
Não se tira nada de ninguém sem consentimento, pensou, triste.
Ela sabia que pesando sobre o pescoço de seu Soldado estava a espada do Tempo e um dia aquele braço desceria sem piedade para cobrar pelo sangue inocente.
A única coisa que posso te prometer, meu soldado, é que estarei por perto para lavar suas feridas ou preparar seu funeral. Mas, confesso, perdi a confiança de te deixar atrás de meu trono, zelando por mim. Não quero ter um soldado com mãos sujas de sangue inocente. Não posso aceitar nenhum tipo de crueldade vã. Mas sei que um guerreiro carrega as suas culpas e suas cicatrizes e que em algumas batalhas se perde mesmo a noção do correto e a honra vira palavra bonita e distante.
Uma pena, meu pobre soldado.
Mas ainda há tempo.
Fique atento.
Quando a cicatriz que fiz em teu peito doer saiba que é a minha magia entrando em você.
Onde eu vi covardia eu te mando coragem e fé.
Onde vi crueldade de envio respeito e cuidado. Te coloco, dentro de peito, também a consciência, para que pese, para que você saiba e, quem sabe assim, mudar o rumo de tuas batalhas.
Um guerreiro de valor tem que saber matar. Mas tem que saber matar direito.
A Rainha tirou suas vestes rituais, guardou o atame, fechou o armário. Na sua cabeça a coroa voltou a pesar mais uma vez e suas costas foram aquecidas pelo manto púrpura.
Sentou no seu trono e tristemente chorou.

5 comentários:

Vivien Morgato : disse...

Lindo.;0)
Tenho uma fascinação por textos que tem um tom lindo e cruel dos contos de fada.Gostei.

Anônimo disse...

Sei, sei...

Anônimo disse...

Ô, meu deus, eu conheci um Guerreiro igualzim, e também joguei tarô pra ele, ó céus.

Entendi tudo, cada linha, cada frase.

Tati, Tati, acho que vou querer um CD seu. Manda e-mail pra mim: blog.menin@yahoo.com.br, que nós precisa bater um papo.

Tatiana disse...

Engraçado isso.
Eu escrevo uma coisa que tá dentro de mim, nem sei se é minha coisa, só sei que tá em mim...de repente bate em outras, bate de forma diferente mas bate...isso não é muito bom???
Poxa, eu acho que é.

Anônimo disse...

Todo homem jovem e forte erra, peca.
Nenhum guerreiro é perfeito.
Ainda bem que a rainha beija os olhos .
Ainda bem.