terça-feira, 9 de junho de 2009

Morte


Escrevo em um blog, primeiro, porque gosto. Depois esse gosto virou necessidade, espaço livre, terapia, catarse, loucura e sanidade.
Eu me fundi naquilo que escrevo.
Ganhei amigos, gente que vem aqui vasculhar minhas gavetas da alma, curiosos, perdidos na selva que é o Google, solitários. Vagantes. Como se entrassem em minha casa que eu mesma deixei de portas abertas. Como a menininha de chachinhos dourados na casa dos ursos. Entram porque eu não me importo que entrem. Entram porque talvez aqui seja mais morno do que aí. Talvez minhas coisas brilhem mais. Talvez aqui as coisas sejam mais fáceis, mais simples. Ou simplesmente, mais distantes. Ou simplesmente outras. Ou as mesmas coisas e isso seja um alento. Um mistério que não sei decifrar. Só sei que eles vem aqui.
Isso! Vejam minhas fotografias amareladas. Sintam o cheiro de meus tapetes, os pelos dos bichos, meu cinzeiro cheio, as xícaras espalhadas pelos cômodos. A luz que entra pela minha janela e alisa as flores do vaso em meu quarto. A fumaça histérica da minha lareira, as cinzas que morreram ali. As tantas tintas que desperdicei. As letras. As lágrimas. As músicas. Os sons grugados na parede, escorrendo até o chão. O violão cansado. As botas de caminhadas ainda úmidas. Meu chapéu apoiado no canivete aberto. As agulhas de crochê entediadas. Os novelos vivos. Tapetes humilhados que sorriem, masoquistas. Plantas faladoras. Panos que dançam. Bancos coloridos que sapateiam. A cozinha vazia mas cheia de alma. As panelas que parecem que sorriem. Talheres como lagartixas. Lâmpadas que são portais. As janelas arreganhadas. A porta que geme baixinho.
Eu.
Tudo ali. Para quem conseguir ver.
Mas parece que existe uma bruma nesse meu mundo. Parece que meu mundo não é nem de todo meu, nem de ninguém, nem de todos. Um entremundos. Um véu eterno.
Cada um vê a cor que mais lhe brilha por dentro da carne. Aqui cada cor é a mesma dos olhos que invadem. As matizes se atraem, incontroláveis. Aqui existe um arco-íris pendurado no teto e sempre quem entra bate com a cabeça nele, olha pra cima e só vê a cor que mais existe dentro de si. Brinca com elas como quem brinca com bolinhas de gudes. Alguns até as colocam na boca, chupam como se fossem balas, pintam as línguas, colorem as palavras. Outros se incomodam porque acham que são outras cores. Reclamam. Xingam. Mas fundo sabem que são o que são e não gostam disso.
Muitos laranjas são manuseados. Minha risada tem cor de cenoura madura e tinge os dentes.
Minha tristeza é azul escuro e muito me surpreende ver quantos azuis existem no mundo. Acho que é a cor que mais se mutiplica, sem perder, no entanto, sua característica de azul. Pelo jeito, a terra é azul mesmo.
Vermelho. Ah, como o vermelho tinge! Uma cor-emoção que esquenta ao mesmo tempo que consome. Minhas cinzas vêm daí, eu acho. Só agora me dou conta disso. Minhas cinzas são vermelhos mortos. Meus vermelhos são perecíveis.
Tem muito verde por aqui também. Verde água, que limpa. Verde bandeira, aquela de mão no peito e olhos mareados. Verde esperança, meio cansado mas ainda ali. Meus verdes são deliciosamente juvenis e eu adoro eles todos.
Amarelos. Roxos. Púrpura. Magentas. Uma paleta completa. Uma farra. Um abuso. Um excesso. Uma afronta. Um gemido.
Minha casa tem uma cor em cada parede e ainda um arco-íris como lustre. Dependendo da hora do dia, tudo muda de cor. Dependendo da hora que meu espírito badala, tudo se tinge. Meu coração é um prisma e a vida, um sol morno.
Cada vizitante me perpetua.
Eu gosto disso.
Mas aí, eu estava distraída, e vi uma nova visitante. Tão velha quanto o próprio Tempo. Não pude ver cor nenhuma em especial pairando sobre ela. Parecia que tinha todas as cores e , ao mesmo tempo, nenhuma. Ela tinha um cheiro de caverna, um cheiro de coisa viva meio morta. Um cheiro de escuridão, talvez.
A Morte entrava por minha casa-blog e passeava, passando seus dedos magros por sobre os móveis, olhando para a paisagem que a todo instante se transformava através da minha janela-monitor. A Morte abriu minha geladeira, não achou nada que lhe apetecesse. Achou uma sobra de minho tinto, encontrou uma boa taça, se serviu, bebeu com desalento e arrotou, delicadamente.
A Morte me ignorava. Até eu esqueci de mim.
A Morte sentou em minha sala, avivou a lareira, acendeu um cigarro e , impressionantemente, adormeceu em minha poltrona azul-envelhecida. Seus pés de morte apontavam para as labaredas aprisionadas, seu cigarro quimava, solitário, e sua cabeça pendeu pro lado. Eu acho que ouvi um suspiro. Eu acho que vi uma lágrima. Podia ser da fumaça, não sei. Podia ser a pressão do trabalho. Talvez. Podia ser só mesmo a vontade de aguar.
Muito tempo se passou e as cores se misturavam em uma grande orgia. A temperatura da sala mudava constantemente. Só a Morte estava estática. Nada nela mexia, além dos milhares de tempos presos em suas roupas. A cada instante um tempo se desprendia, agonizava e virava pó.
Acho que vi almas batendo em minha janela, procurando por aquela que sabia o caminho. Meu quintal era um amontoado de perdidos, um acampamento silencioso, um alvoroço soturno.
A morte dormiu no meio de minha sala e eu não soube o que fazer.
Saí de fininho, sem querer fazer barulho e encostei a porta, implorando que ela ficasse calada. Ficou. A morte dorme em minha sala e eu fico aqui, me desviando de fantasmas até chegar ao portão.
A rua é fria e a sombra da morte já alcança o teto.
Achei prudente esperar aqui fora, até ela acordar.
A Morte é, definitivamente, uma visita constrangedora e me faz pensar se não é a hora de fechar a casa para visitações. Se até a Morte me visita!
Atenção demais, penso eu em meio às minhas próprias brumas.
Gente demais que não sabe reconhecer o que é encantamento e o que é loucura. Gente demais que não sabe diferenciar magia e mágica. Gente demais que não sabe que não precisa se esgueirar, nem quebrar a porta. A questão não é entrar, não é essa a coisa mais importante.
O segredo é saber que cor pegar. Saber que cor se é. E mudar, em alguns casos.
Mas somente a Morte pode se dar ao luxo de dormir aqui, afinal, ela já tem todas as cores. Ou nenhuma. A Morte está acima dessas miudezas. A Morte simplesmente é.
Só ela e mais ninguém.
Talvez a Morte não saia mais daqui e eu, covarde, fique de fora.
Talvez ela se transforme em um arco-íris.
Talvez ela dê seu abraço macabro em alguns visitantes desprevenidos.
Não sei.
Só me resta aguardar.
O Tempo se senta ao meu lado e eu sinto o peso estranho de seus braços em meus ombros.
A vigília começou.

3 comentários:

Isa disse...

É a primeira vez que comento, apesar de sempre lhe visitar...gosto de seu jeito humano demais...matando um leão por dia,nunca desistindo...deixe as portas abertas, nós somos energia e algumas energias boas hão de chegar aí...talves até de uma pequena burguesa que ri e chora com você, mesmo que seja virtualmente...

Fernando Siqueira disse...

Diacho de texto é esse, meu Jesus Cristinho?! Vá-te retro, ceifadeira! Trêis pai-nosso, credo-em-cruz, ave-maria, mangalô trêis vêiz, fai issu não, Tatiana, manda essa nêga embora, e é já... nem vem, muito menos vai, eu, hein? Que coisa! Falando sério: cê me assustou!Diacho de texto!

Tatiana disse...

Era só uma intuição ruim que se confirmou.Só isso.