quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Boldrini

Sim, eu estava com medo.
Medo de mim mesma, somente isso.
Ontem, antes de dormir, montei meu altar, arrumei algumas coisas e rezei. Ajoelhada, testa batendo no chão, eu rezei. Rezei com fé, rezei com força, pedi aos santos, aos orixás, pedi a falange do erês, pedi aos elementais, pedi para todos que vinham na minha cabeça. Pedi muitas vezes. Pedi ajuda porque não sou de ferro, não sou inquebrável, não sou invencível. Conheço minhas fraquezas, sei exatamente onde posso fraquejar e eu não queria isso. Precisava ser forte porque de que adianta uma cantora que canta e chora por piedade? Aliás, pra que serve a piedade?

Amanheci serena e firme como um ramo de bambu. Não vou segurar nada, nem me opôr a nada. Somente " ser". Ser a voz que canta, ser a alegria, ser o momento de esquecimento, de alívio, de cor e som. Vou ser o que eu sei que vim ser aqui na terra: a cigarra no mundo de formiga.

O centro radiológico é bonito e claro. Um imenso painel de mosaico traz brilho do teto ao chão. Lindo. Aquela profusão de cores me alegra a vista e eu percebo que naquele lugar havia cuidado com os detalhes, um lugar para minimizar a realidade tão difícil.
Ter meu filho ali do meu lado me dava força. Importante ele ver isso. Importante ele estar do meu lado.
Ver os bonequeiros compenetrados e sorridentes me dava força.
Ver os músicos do meu lado me dava força.
Juliana ali, com sua câmera na mão e coração escancarado, me dava força.
Felipe, a produção, me dava força.
Cada um de um jeito, mesmo sem saber, me dava força.

As crianças começaram a chegar.
A maioria carequinha. Todos crianças. Lindas. Algumas com um olhar que eu já vi na outra vez que toquei no Boldrini e que eu identifiquei como " desesperança". Não sei se é isso. Não sei se é dor, se é enjôo. Só sei que está ali, saltando aos meus olhos e aquele olhar me dói mais do que uma vaia em pleno show. Aquele olhar é a "minha batalha", é aquilo que eu vim vencer. Aquele olhar.
Segurei firme do começo ao fim.
Ri junto com a menininha sem os dentes da frente, com o garotinho de riso frouxo, com aquela mãe que era só aço e doçura.
Conforme eu ia cantando, falando, contando as minhas histórias eu via a energia do lugar ir mudando, pouco à pouco. Bolhas azuis, rosa, amarelo claro iam subindo e ficavam boiando, grudadas no teto. Eu via feixes multicoloridos saindo dos adultos e se enrodilhando em todas as crianças. Eu vi que eu não estava só e que, por de trás de meu coração, uma mão me sustentava.
Aquela menininha tira o chapéu florido e eu vejo a imensa cicatriz em zig-zag em seu crânio. Meu peito aperta. Ela vem sambar comigo do alto dos seus dois aninhos, quase três. Sofia...Sofia queria entrar em cena o tempo todo e era toda sorriso. Quase que Sofia me desmonta.
A menininha que não teve nenhum adereço pra segurar aceitou meu convite humilde e sem graça de vir comigo pro centro do palco e simplesmente dançar. Quando eu peguei a sua mão, senti o quente. Ela estava febril mas, mesmo assim, veio comigo. Ela veio comigo...aquela menininha veio comigo...mais uma vez, ressuscitei.
Um mar surgia por detrás de meu olhos. Um tsunami em mim.
Todas as minhas represas tinham um menininho com um dedinho evitando a enxurrada que se esgueirava pelo buraquinho.
Me ajuda, meu pai, não me faz escorregar agora.
Aquela outra menininha que não me deu nenhum sorriso. E quis tanto aquele sorriso e ela não pôde me dar. O que será que passava com ela? Dor? Enjôo? Ou seria somente uma falta de vontade de rir?
Não sei.
Aquele bebezinho cabeludo que saltitava no colo do pai, os olhos vidrados em tudo.
Os olhos molhados da moça que trabalha na brinquedoteca.
A velha de cabelos brancos e rosto trincado. Só rugas que já viram tantos anos. Achei a velha de cabelos brancos um ironia.
A porta do auditòrio cheia de gente vendo lá de fora, como se não fosse permitido entrar. Mas era.
Era pra todo mundo entrar nessa viagem de sonho e encantamento.
Era para cada criancinha sorrir comigo.
Era para cada adulto sorrir como criança.
Era pra eu ser maior, minha voz mais forte, meu braço mais longo pra que eu pudesse afagar um mundo inteirinho. Era pra eu ter vazando do meu peito o leite que cura tudo, de desmancha toda dor do mundo.
Era uma vez um sonho meu que eu sei que não é possível.
O que eu sei ser possível é cantar com a alma cheia de luz porque o mundo precisa de luz.
O que eu sei é que a alegria é um bem precioso demais pra não se doar, escandalosamente, aos borbotões. Nã devia existir economia de alegria.
O que eu sei é que eu consegui seguir em frente porque em minha volta tinha tanta gente, tanta luz, tanta vontade, tanta gana que foi, deu certo!
Só me permiti soltar as minhas águas todas quando saiu do auditório a última pessoa e as portas foram fechadas. Meu filho do meu lado, sua mão em minhas costas, seu olhar em mim. Aí, olhando meu filho lindo, saudável, perfeito, aí sim, eu chorei.
Choro pouco, choro segurado por muito tempo, choro bom. Choro meu que nem adianta tenar explicar. É essa minha emoção toda, essa minha pele que arrepia, meus olhos que vêem tanta luz, mas vê também tanta sombra.
O mundo é feito de luz e sombra. Cada um escolhe onde ficar, o que ser, para que cantar. A sombra tem sua função, sua missão e, certamente, também deve chorar quando longe da luz. As sombras também devem sofrer por somente " ser".

Fui embora com uma decisão tomada.
Volto lá. Não sei pra que, se pra cantar, pra contar histórias, pra fazer reiki, okiome em quem precisar...mas eu sei que eu volto lá.
Só assim eu vou secar meu pranto porque eu sei que dentro de mim quem mais chora é aquela que sabe que poderia estar fazendo muito mais do que faz. É essa que realmente chora.
Eu volto lá.
Tá prometido.

10 comentários:

Delfina Reis disse...

acompanho sempre seu blog, adoro sua sinceridade e transparência, choro e me divirto junto...
obrigada por compartilhar.
beijocas


about me:


http://www.dodotoyart.com.br

http://criaturafigura.blogspot.com/

Anônimo disse...

clap , clap , clap , clap

N. Calimeris disse...

Oi, TAti! Nem sei se é a tpm... mas, foi impossível segurar as lágrimas com um relato tão sincero. Será que um dia, dou aula para as mães dessas crianças para que o guerreiro dentro delas aflore com toda força de dentro do peito? Como seu relato foi fundo na minha alma! Entrou perfeito ao saber que você existe, que você é humana e que você conseguiu!!!! Assim, se você consegue viver, apesar de tudo, eu também consigo! Obrigada por esta lição.
beijo nessa alma louca e deliciosa que compartilha tanto de bom com quem ainda aprende a caminhar.

Tatiana disse...

Delfina,
Você não imagina como é bom " ouvir" isso...

Tatiana disse...

Anônimo,

Obrigada

Tatiana disse...

Georgiana,
è uam coisa que mexe com a gente, né?
Claro que a gente cosnegue viver! Gente é pra viver! Pra rir, pra gozar, pra cantar...gente é pra viver.
Eu não sou mais forte que ninguém. Talvez fale mais do que passe dentro de mim e não tenha vergonha de escancarar pro mundo.
Você, de coração aberto, é a mais pura força que pode existir.
Você, mulher, mãe...você é foda, querida.
E você quando vem aqui e me escreve essas coisas, você está sendo aquele suprte que e preciso quando me sinto assim, meio mole, meio frágil, só sentido e emoção.
Todo mundo está unido.
E eu agradeço a você pr isso, viu?
Beijos...

Anônimo disse...

me chame que eu vou junto. vou cantar com você.
Taïs Reganelli

Anônimo disse...

Que aperto no coração...! A fala da Georgiana foi em cima: "Que bom que vc conseguiu quer dizer q também consigo" "Somos feitos da mesma matéria q os sonhos...", né?
beijo!

Anônimo disse...

AAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH! Que foda Tatiana, que foda!

Lígia Moreli disse...

Nossa, me arrepiou esse seu relato...