quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Um pretinho bem pretinho, mas bem pretinho mesmo. Uns catorze, quinze anos.
-Dona! Ô Donaaa!
Os cachorros fazendo aquele barulhão.
-Você não quer que eu limpe a sua calçada?
-Ô, meu bem. Eu ando tão dura.
-Eu te faço um precinho camarada porque a senhora é amiga da sua vizinha aí.
-Quanto?
-Dez conto.
-Fechado.

Entro me casa pensando que o trabalho dignifica o homem e é muito bonito ver uma rapazola daquele disposto a ganhar dez reias. Afinal, ele podia estar roubando, podia estar matando...
Dois minutos depois, ele me berra de novo:
- ô Dona! Donaaaaaaaaa!!
-Sim?
-Você tem um e cinquenta para eu comprar um salgado aí do lado? Tô com fome. Não comi nada ainda.
-Eu te dou um prato de comida legal? Fiz almôndegas!
-Não...eu não gosto de comer comida fora de hora.
(???????)

Lá fui eu pra dentro de casa. Vai lá que ele gosta de baixa gastronomia. Uma coxinha de galinha tem seu valor mesmo.
Dou os um e cinquenta e logo vejo ele voltando com um cigarro na mão.
Dou uma bufadinha discreta. Quem sou eu pra falar de cigarro? O coitado já tá lá no vício. Tão mirradinho, assim é que não vai crescer mesmo.
A cozinha precisava ser arruamada. Tô passando pano no chão...
-Ô Donaaaaaa! Ô Dona!!!
Os cachorros histéricos.
- O QUE É?
Minha doçura escorria lentamente para dentro do balde com produto de limpeza.
-Sabe o que é? Aquela vaca, aquela ..aquela vadia da dona do boteco tá me cobrando uma dívida lá. Não daria para você me adiantar a grana para que aquela puta, aquela louca...
-Se você não parar de xingar eu vou abrir o portão e deixar meus cachorros de comerem.
( silêncio)
-Olhe aqui, meu filho. Diga para aquela senhora que você vai pagar o que deve DEPOIS que acabar aqui, tá certo?
-Tá. Tá certo.
Volto mais uma vez. Ouço uns tec tec de uma machadinha no matinho da calçada.
-Dona?
-Mas o que foi agora, meu Deus do Céu?
-Você tem enxada?
-Mas porque diabos eu teria enxada aqui em casa? Não tenho não. - eu estava começando a focar irritada.
-Então eu vou lá em casa pegar um enxada. A senhora fica tranquila porque todo mundo me conhece aqui, viu? Eu vou e já volto com a enxada porque esse machadinho tá ruim de mais.
-Tá. Vai pegar essa tal enxada.
Dez minutos depois...
-Ô Donaaaaaaaa! Dona!!
Fui que fui pro portão.
-Mas o que foi agora, cacete???
-Minha mãe acabou de me dizer que meu tio, aquele que trabalha com a carroça, foi atropelado. Morreu na pista. Atropelaram tudo. Ele, o cavalo, a carroça.
Aquela expressão desolada naquela carinha preta. Parecia o Negrinho do Pastoreio.
-Ai, meu Deus do céu...
-É. Eu tenho que ir com ela pra Mário Gatti ( um dos hospitais públicos daqui)...
-Uai, pra que? Teu tio não morreu?
-Morreu, mas tem que ir pra lá.
-Puxa vida, que coisa, meu bem. E o cavalo?
Eu já estava toda compadecida.
-Quebrou as quatro pernas.
-As quatro?
-As quatro.
-Puta merda. Que tragédia.
-É mesmo. A senhora podia me dar algum dinheiro para eu ir lá com minha mãe, de ônibus?
Algo me diz que esse merdinha tá me enganando. Mas se não tiver?
-Quanto você precisa?
-Quanto a senhora puder.
Dei quatro reais e ele foi jurando que voltava hoje.
Volto pra cozinha pensando que ele matou até o tio. E ainda quebrou as quatro patas do pobre cavalo. Era bom ele. Me enrolou direitinho. Deve estar agora lá, se acabando no crack. Ou na pinga pura, enchendo a cara com quatro reias. Quatro não! Cinco e cinquenta.
Quando eu conto o ocorrido aqui em casa recebo na cara, d eum homem que diz que me adora:
-Você é uma besta.
O dia amanheceu. Chovia pra cacete. No meio da tarde, aquela chuva fina e constante, eu ouço:
-Ô Dona! Donaaaaaaaaaa! Donaaaaaaaaaa!
Meus cachorros querendo comer o Negrinho do Pastoreio.
-Vim acabar o serviço.
Um sorrisão se abriu dentro de mim. Viu só que ele não tava de história? Viu?
-Mas, meu bem, tá uma chuva do cacete. Vem depois.
-Não, Dona, vou acabar hoje. Combinado é combinado.
Volto pra casa.
Dois minutos se passam.
-Donaaaaaaaaaaaa! Tô com fome. Não dá pra a senhora me dar um e cinquenta pra eu comer uma coisa no bar?
Dessa vez eu não dei mole. Fiz um pratão de comida e dei pra ele. Coma essa porra aí e arranje um lugar seco, senão vai molhar a comida.
Dois minutos depois ele me devolve a colher e eu tenho certeza que não comeu porra nenhuma.
-Eu preciso que a senhora me adiante algum...
Eu fiquei olhando pra cara dele. Pensando " será possível que esse merdinha é tão safado assim?"
Entrei peguei um e cinquenta, o que já totalizou um empréstimo de sete reais, e dei para ele. Nenhum matinho foi arrancado.
Entro.
Ouço ele me chamar de novo e avisar que estava chovendo muito mesmo e que ele voltava amanhã. Outra vez.
Foi embora e eu fiquei com aquela cara de besta.
Amanhã será o dia D. Se ele voltar, o mundo ainda tem salvação. Se ele sumir, eu ficarei muito, muito decepcionada com este moleque que me enrolou direitinho.
Amanhã. Amanhã eu quero ver.
Ou ele é ótimo ou eu sou uma anta completa.
Não quero saber a opinião de ninguém.
Não preciso ouvir nada!
Nada!

7 comentários:

Tatiana disse...

Ele voltou!
Conseguiu me levar mais cinco reais
e a calçada está do mesmo jeito.
Eu sou uma anta.
POnto final.

Anônimo disse...

Não é não. Você corre o risco de adota-lo. CUIDADO.

Anônimo disse...

Tatiana
Você é a anta que mais amo, tá?
Mas é burra pra cacete!

Tatiana disse...

Adotar?
Adotar esse enrolador d euma figa? Jamais..
mas confesso que pensei em ser madrinha dele..
ai..sou uma anta mesmo

Anônimo disse...

Que saudades do pelourinho!

Gustavo disse...

Oh mulekinho fia da puta

Anônimo disse...

Mas que coisa, hein! Também acho uma merda não poder confiar nas pessoas... E o nosso mal é confiar... Humpf!