sábado, 20 de janeiro de 2007

O deslize da Bruxa

Sobre minha cabeça, um feitiço antigo.
Mais antigo que eu, talvez mais antigo que minha alma pagã que viu fogueiras e estrelas, que viu serpente e dragões. Minha alma sempre adormece entre símbolos velhos e empoeirados e ali ela se sente em casa.
Eu não sabia ao certo o que estava acontecendo. Mesmo tendo uma alma antiga, este corpo é do aqui e do agora e carrega o fardo do manto do esquecimento. Eu tinha somente um pressentimento, uma leve sensação que entrava por um caminho muito, muito perigoso, mas sentia também uma sensação de reconhecimento muito forte, uma consciência que já tinha vivido aquilo, que em outros círculos, de outros tempos, eu já tinha estado nua e sagrada em consagração divina.
Mas eu não sabia das conseqüencias de meus atos. Não sabia o preço que se paga quando se invoca tamanho poder, quando desperta o passado ancestral.
Hoje eu sei.
Nossos punhais virgens dentro do local sagrado, os quatro elementos em seus devidos lugares, um caldeirão fumegando naquela noite de inverno intenso. Sobre nós, um luar imenso.
Eu comandava o ritual de consagração , eu ali, como a Iniciada, os símbolos queimando em minha testa, a lua adormecida em minhas mãos e pés, meu olhar desfocado entre os mundo e ali havia poder, muito mais poder do que eu poderia imaginar quando começamos aquele ritual.
No instante que se ingressa entre os mundos, se perde a noção desta realidade e eu me deixei levar pelo maior poder que pode existir entre um homem e uma mulher.
Dentro daquele círculo não éramos somente dois. Erámos vários, erámos a Deusa e seu Consorte. Éramos Adão e Eva e a Serpente adormecida levantava a seus olhos e subia por minha coluna em dança espiral. Voltamos a ser guerreiros, os corpos cobertos de sangue, os braços cansados da espada. Me vi dentro da sua pupila, morrendo em seus braços mais uma vez. Me vi como uma arara, chorando a sua perda. Me vi andarilha, pobre e sofredora, meus pés rachados e meus olhos ainda nele. Me vi cigana, comandando os cavalos de uma carroça, em minha coxa uma faca suja de sangue da outra que cruzou meu caminho. Tudo em um único brilho de raio.
Isso tudo eu vi.
E quando suas mãos começaram a me acarinhar o rosto, quando seus dedos entravam em meus cabelos, a lua como observadora silenciosa, naquele instante, nos transformamos em deuses, uma grande explosão aconteceu, tudo aquilo que se sentiu ou pensou, a mais pura energia, se transformou, se perpetuou. Laços foram criados, cordas foram trançadas entre as pernas e os pulsos, fios invisíveis laçaram meu coração em seu coração. Meu pensamento mortal gemia e pedia "quero esse homem para mim" e ele, sem saber dos meus pensamentos também me exigia e me transformava em sua.
E assim, sem querer, sem me dar conta do que fazia realmente, fiei meu triste destino.
Hoje vivo acorrentada em todos os contos de fada. Sou a Princesa na Torre esperando alguém para jogar as tranças. A pobre coitada que adormece por séculos e mais séculos. A eternamente perdida na floresta, fugindo de sua inevitável sina.
Por isso que conto minha história, para ver se quebrando esse silêncio de tantos séculos, retirando o véu tão empoierado de história, a força esmoreça e eu possa seguir, virando as páginas.
Hoje vivo sentada nas linhas dos livros de histórias. Sou a bruxa encantada, sou a louca, a cortesã, a mendiga, a solitária, a poetisa, a vidente. Sou aquela que não se diz o nome, sou a catadora de ossos, a virgem mutilada, a menina sem pés, a princesa cega, a iara na terra.
Por isso conto a minha história.
Para ver se outro homem consegue romper as ervas que nasceram em volta do meu palácio abandonado. Para matar o ogro, vencer o dragão, decifrar os enigmas e quebrar meus grilhões.
Por isso grito a minha história. Para me fazer ouvir por sobre os muros de pedras que me rodeiam, para ver se, quando contada, minha triste ladaínha, a força desse encantamento se quebre em milhares de pedacinhos e eu possa ser outra vez livre.
Mas eu não posso fazer essa magia sozinha. Preciso que outro homem me roube o Mistério e me liberte. Preciso que outro guerreiro grite seu brado, que outra espada invada as entranhas do gigante mau e me liberte. Preciso que outra alma antiga me segure as mãos e me leve por outros caminhos e me liberte. Preciso de outro beijo que quebre o encanto.
Magia se resolve com Magia.
Então preciso de magia nova e forte porque estou cansada de ser história antiga e recontada.
Estou cansada de amarelar nas prateleiras, página velha e manuseada.
Então, invocando os quatro pontos, os poderes do céus e das terras, pedindo aos Senhores do Tempo, aos Guardiões dos Portais que se faça o Sagrado no aqui e no agora, mais uma vez.
Para que eu possa seguir em frente em minha história. Para que eu possa deixar de ser lenda, deixar de ser memória, deixar de ser sonho. Para que se rompam os laços e se quebrem as correntes! Para que meu coração voe alto e minha alma se desvencilhe daquilo que ficou misturado. Que se desatem os nós através de outros dedos!
E que esse cavalheiro possa ser nobre e valente, honrado e puro.
Porque só um coração verdadeiramente entregue tem poder para quebrar este encanto.
Eu assim falo e assim é!

5 comentários:

Ronaldo Faria disse...

Um lindo texto, que você já deve conhecer. Se não, leia. Cuide-se.

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíches porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.
E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema, a engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À luta. À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti

Vivien Morgato : disse...

Você conjurou o desejo. Está feito.;0)

Anônimo disse...

assim voce deseja e assim será

~line.leits disse...

Maravilhoso, simplesmente...
Cheguei a me sentir completamente envolvida no final!! Nooossa... adoreiii!!
Vc vai ser ouvida Tati, com certeza!
Beijos! =]

giggia Barreto disse...

Assim vc fala e assim é!