segunda-feira, 1 de agosto de 2005

Primeira Publicação

Primeira publicação.
Sempre escrevi muito. Com o passar dos anos fui ficando com pouco tempo mas agora a saudade apertou e voltei.
Quero deixar aqui alguns textos meus, letras, parcerias, minhas coisas...
vamos lá.
O texto que segue eu fiz durante um ataque de amor pela cidade que me acolheu: Campinas. Pelo menos foi este o sentimento que me arrebatou no começo da coisa toda. Depois foi tomando um caminho que eu já não tinha mais controle. Talvez seja assim sempre quando a gente cria. Um descontrole. Um arrebatamento.



O CENTRO DA CIDADE, ELE E OS ANJOS

Adorava andar pelo centro da cidade. Adorava aquele burburinho constante, o caos organizado, a rapidez que tudo passavam em frente dos meus olhos. Adorara ouvir o barulho, os gritos: dos cobradores das vans arrebatando passageiros como se esses não soubessem como chegar onde queriam. E muitos não sabiam. Eu não sabia. Não sabia para onde ia, mas ia mesmo assim. E o centro da cidade era o caminho que sempre começava alguma coisa e ,ao final, retornar outra vez.
Chegava a ficar nos pontos dos ônibus esperando alguma que nunca chegaria. Só queria estar ali, vendo tudo correr rápido na minha frente. Olhava as pessoas, os tipos, o maluco, a solitária, a pobre feliz, a mãe exausta puxando sua cria pela mão, toda amor em plena irritação, a linda que não sabia que era, a feia que também não sabia de nada. Gostava de ver os moços viris, os tímidos, os engravatados, as executivas equilibradas em saltos altos e eu ali, torcendo para que escorregassem e perdessem a pose e a minha risada seria lépida e discreta. O cheiro do Mercadão, aquela promiscuidade de cores, texturas, aquele mundo na pele do povo.O corredor do mercado de genéricos, boa tarde senhora, bom dia senhora, um rádio? Capa de celular? Relógio a 20 real...Tanta gentileza!!! A banca de ervas secas, quilos e quilos de velas, multicores na fé de cada um. Os bichos, cocoricós, grusgrus, quac, som e cheiro se misturando, corre que o sinal abriu. Filhodaputa!!! Vá passar por cima do cu de tua mãe, caralho!!! Adorava os palavrões populares. Tão espontâneos, tão sonoros. CARALHO;;;CA_RA_LHO...Vápaputaquepariu. boooooceta...ai, como era deliciosa a capacidade de comunicação do povo do centro.
Nunca pode entrar naquele boteco meio sujinho e tomar um fanta uva. Tinha que ser uma fanta uva. Porque só a fanta uva tinha a cara do centro da cidade que eu tanto amava. Uma grande bacanal de corpos se roçando sem querer e cada trombada era um suspiro, um tremor. Agarrava a bolsa pra manter as mãos seguras, não meu dinheirinho parco. Segurava a vontade de passar os dedos por qualquer um, tateando a humanidade. Eu era uma puta dos sentidos.
Minha vida era a de observadora. Eu por fora, só tranqüilidade, serena figura, óbvia na minha vida. Mas só eu sabia que , por dentro, eu era o centro. Louca, caótica, suja, mista. E eu amava ter meus segredos que ninguém nem imaginava.
E foi assim, enquanto eu saboreava minha cidade, que eu vi, de dentro de uma van, aquele par de olhos castanhos. Grudaram em mim. Só vi os dois círculos escuros envolvidos por alguém e fui sendo arrastada pra longe até quando virou na José Paulino e eu o perdi. Naquele instante sabia que eu é que tinha me perdido.
Voltei várias vezes ao mesmo lugar. A mesma esquina. Já sabia quanto tempo o sinal ficaria verde. Vermelho, amarelo, verde. Piscando pra mim. Eu aguardava.
Um dia, a tarde estava quente e úmida, avisando chuva que, pendurada, não vinha. A roupa grudada em meu corpo, o cabelo grudado na cabeça, a mão grudada na bolsa e eu grudada ao ponto, esperando que ele voltasse, quando ele, realmente apareceu em minha frente. Assim, sem pensar, esbarrei nele. Desculpe. Não tem nada não...Foi assim. Um esbarrão. Finalmente pude saborear a fanta uva com pastel de carne. Foi ali, no centro da minha cidade amada que comecei a ser realmente feliz.
Amor absoluto, loucura mesmo. Como eu, ele também transitava pelas ruas espalhando a sua generosidade.Ele era meu oposto. Enquanto eu aparentava normalidade e equilíbrio (mentira, é claro) ele era um perigo explícito, mas por dentro tinha um amor pelas pessoas e pelo mundo que eu nunca poderia ter. Sua doação era tanta que se dava a quem quisesse. Ou pagasse. E não era por dinheiro não, era só vontade de fazer alguma coisa por tantos que sofriam solitários. Suas mãos eram as mais carinhosas, sua boca a mais generosa, seu corpo o mais viável. Ninguém via que era só bondade que emanava dele. Cada um dá o que tem. E ele só tinha a ele mesmo.
Minhas tardem se transformaram. Parei de passear pelas ruas e observar meu povo. Eu só tinha olhos para ele. Aliás, tudo meu era dele. Meu corpo era como baciada, e ele vasculhava em mim, procurando cada peça em promoção. 1 e 99 das sensações. Mas quem pagava era eu e me cobrava o preço do centro mesmo. Mais em conta pela fidelidade. E eu, fascinada, me deixava em liquidação. Minha alma berrava, deliciada, quando ele me bagunçava toda. Fui perdendo a compostura. Queria cada vez mais que ele me levasse para os cantos mais escuros de mim mesma. Aqueles lugares que não se vai, jamais, sozinha á noite. Queria o sórdido, queria o limite do corpo, queria o limiar entre o cordeiro e o lobo. Ele me comia como churros vagabundo, escorrendo o excesso pelos dedos, em pé mesmo, me chupava como canudinho de guaraná barato, e eu, feliz, fazia borbulhas no seu nariz. Ele passeava em mim como eu passeava pelas ruas da minha cidade. Violência e ternura.Ele fazia passeatas em mim, o danado...
Nunca fui tão feliz como quando ele me dava a sua santa generosidade.
Um dia me disse que não poderia mais me ver. Acho que ficou preocupado em restringir sua atenção só pra mim. Os bons são assim. Pensam sempre nos outros e eu , de tanto que me misturei a ele, deixei de ser o outro.
Voltei a perambular pelas ruas, mas agora eu já não via graça em mais nada. Tudo era imagem correndo distorcida. Sem foco, eu me arrastava pelas ruelas. Os outros que se esbarravam em mim, como antes eu gostava, já não me causavam o frisson. Tinha me perdido mesmo de mim.
Foi nesta fase que eu tive a revelação. Estava na frente da Catedral, só estava ali. E os berros enlouquecidos do funcionário de Deus nem me abalavam. Mas ele continuava falando do fim do mundo, de Jesus, mas falava como se quisesse que Jesus o ouvisse lá das alturas. As palavras martelavam meus ouvidos. Tum Tum Tum Tum.
Foi ali que eu vi o primeiro anjo. Me surpreendi porque imaginava asinhas e tudo mais, aquele ar puro e casto, mas o que me apareceu foi uma mulher lasciva, boca manchada de carmim, roupa colada na carne e me olhava sorrindo. Acho até que faltava um dente. Me estendeu a mão e fui com ela, vagando pelas ruas de minha cidade. E me levou por cada canto que eu tinha derretido nas mãos dele. E o anjo-meretriz me beijava a boca e teu hálito era o sopro da respiração dele. E ela ria pra mim e eu podia ver que dentro da pupila do olho dela tinha o olho dele olhando pra mim, um farol me cegando a vista e, perdida, queria entrar nela pra achar ele. E o divino anjo ria de mim cada vez mais. Comecei a procurar o resto dele. Esquartejaram o meu amor. E eu tinha que fazer um quebra cabeça. Procurei em todos os vãos que pude entrar. Negros, brancos, mestiços, viados, mulheres loucas, mendigos, crianças, drogados, quase mortos e quase vivos. Cada um teve um momento de ser revirado pelo avesso porque eu precisava achar o meu amado.
Os anjos começaram a andar em grupos. O anjo-meretriz trouxe outros colegas. O anjo-criança me roubou a bolsa, me deu uns bofetões, mas, graças a Deus achei o sorriso do meu amado. Anjo-fardado me deu, além de mais fanta uva e pastel de carne, a textura da pele de meu amor e uma leve lembrança do que seria tem a carne dentro da carne. Mas o cheiro do sangue na mão dele me embrulhava o estômago.
Quantos anjos Deus em enviou! E cada dia aparecia mais, minha história corria e todos os anjos apareciam para me ajudar a encontrar o que eu procurava. A bondade divina é realmente incomensurável! Teve até um que nem sei ao certo se era anjo ou se era uma mentira porque ficou tão pouco tempo perto, parecia que era ele que procura alguma coisa em mim, mas foi tão rápido que não consegui ver de meu amor nele porque saiu voando, subiu a Glicério e me deixou ali, escorregando na parede, no escuro, sem poder me lembrar do que eu tinha visto nele. Anjo não tem tanta pressa.
Quando me contaram que meu amado tinha sido visto de novo em minhas terras eu quase explodi. Ele tinha voltado pra mim e íamos voltar a comer a nossa própria carne, canibais de novo. Eu ia sentir a unha me arranhando a cara, ia ter meus sentidos alagados de chuva de verão, entupindo minhas valas, me enchendo de sujeira e entulho. Eu, como o centro, sem ele estava em reforma. Esculhambada. Mas sabendo, que assim que ele voltasse, voltaria em mim a falsa ordem, a mentira costumeira, a delícia de ser uma em várias e várias em nenhuma porque eu já não era mais o que eu fui um dia.
Foram momentos de muita esperança. Nem quis mais saber de anjos e tudo mais. Na precisava procurar, precisava esperar. Foi aí que percebi que o mundo celeste tem suas mal-criações. Fui abrigada a fazer concessões. Alguns anjos são grandes e fortes e não aceitam muito bem a rejeição. Meu corpo sofreu muito neste período. Mas agora eles é que procuravam em mim alguma coisa e mesmo eu não sabendo o que era, não dava nada a eles além de minha presença. Mas minha alma, quase santa de tanto amor, estava acima das luzes, estava planando no alto dos prédios, como papel picado ao vento.
Um anjo me disse que meu bem amado tinha sido arrastado por uma van naquela mesma esquina da José Paulino com Benjamin Constant. Não pude acreditar. Arrastado pra onde, perguntei.
Me falaram que o que restou devia estar no necrotério do hospital público. Por isso to aqui. Preciso devolver a ele o que eu achei espalhado. Eu tenho os olhos, a pele, a boca, as pernas, o sexo, eu tenho tudo dele, quase, em mim. Só quero que me deixe devolver o que é dele, só quero montar meu quebra cabeça. Me deixe dizer que meu amor ta aqui, no meio do peito, abandonado, como o prédio da Embratel. Sim...só olhar...não..a morte não me assusta. Já morri mesmo.
Meu amor, ta aqui. Tão só, tão frio, tão separado de teus olhos castanhos. Deixa eu te dizer bem baixinho, aqui, onde era teu ouvido. Te amo. Te amo.Te amo insanamente. Amo você que se entregou a mim como mulher, que me amou como só uma mulher sabe amar. Te amo. Te amo. TE AMO!!!! Já vou me espere. Conheci anjos lindos e bons, como você, meu anjo vivo. Me espere que eu to indo pros braços de Deus, braço dado com você. To indo, meu amor. Estão me arrastando, meu amor, mas me espere que eu to chegando. Veja só, amado meu, as trombetas de Deus estão tocando, todas as buzinas estão tocando pra anunciar nosso casamento. Todos os camelôs são padrinhos. As putas velhas são madrinhas. Amado meu, a procissão dos perdidos abre caminho pra nosso amor!!! O crente que berrava na catedral está vestido de anjo e diz que pode nos casar. Veja só, meu bem...Amado meu, fuja da luz, fique onde eu possa te encontrar. Amado, me espera porque um dia eu vou te encontrar.
Amado meu, porque me abandonaste???? Perdoe! Eles não sabem o que fazem...não vêem que você é um santo. Não ligue não, amor...Vamos nos banquetear com fanta uva, você vai lamber cada gotinha que escorrer ...vamos nadar em um mar de carne moída...nossa cama vai ser a lona que embala tanto cd pirata, a gente se enrola na bandeira da cidade e sai correndo pelas ruas, entrando e saindo de cada igreja, cada templo, cada deus dando uma benção!!...ah..meu amor...me espera...e não se preocupe...eu vou levar em mim o que falta em você...o último beijo...cadê a boca..era aqui...meu suspiro...encha teu peito morto de esperança porque eu vou te embalar, vou botar meu bico de peito dentro de teu coração e vou jorrar leite em sua alma cansada...meu amor...já estou chegando...só falta fechar os olhos...olhos...teu olhos castanhos brilham no céu como o sorriso do gato...e o brilho dos teus dentes me orientam...to chegando...teu cheiro...teu cheiro de fumaça e poeira ...reconheço este falo...na minha mão, o bastão que me sustenta. Tateio no escuro e só tenho na mão teu sexo amolecido..o barulho do teu coração emudeceu mas ainda sinto a vibração dos ônibus sob nossos pés, tremo como quando me penetrava...to chegando, amado meu...cadê você, meu amor...esse silêncio me incomoda, eu to chegando...amado meu não me deixe aqui sozinha porque eu já to chegando...amado meu, meu amor, minha vida, eu tô chegando, meu amor, chegando, chegando, chegando....cheguei!


Tatiana Rocha
18 de dezembro de 2004

Nenhum comentário: