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Esse capítulo fala de uma das figuras centrais do livro, a Vó Divina.
CAPÍTULO 7
“Ela
é uma velha sentada em seu banquinho. Ela é madrinha quem cuida do
canzuá”
Tatiana
Rocha
Tinha
chovido bastante na noite anterior e as ervas estavam felizes com
aquela umidade toda.
Divina
estava sentada em seu toco predileto, tomando seu café e observando
o dia nascer. Todas as juntas de seu corpo doíam, os dedos já
estavam tortos, qualquer movimento era uma tortura.
Não
tinha medo da morte, ao contrário, ansiava o instante que se
libertaria do seu corpo velho e poderia voar livremente. Oitenta e
três anos é tempo demais pra se viver. Todos os amigos já tinham
partido, tudo que lhe era familiar tinha mudado. Se sentia só e
antiga, muito antiga. Sentia saudade de comer e beber juntos dos
seus, de poder dançar um bom samba de roda, de varar a madrugada
cantando, das giras de festas, da casa cheia de gente.
Agora
não fazia mais essas coisas.
Observou
que a arruda estava secando. Passou os dedos nas folhas secas e falou
carinhosamente:
“Ô,
erva danada de boa, sô! Vira e mexe resseca e morre anunciando que
tem demanda chegando aqui. Como se eu não soubesse que se vive no
meio de um mar de demanda. Vou colocar mais estrume bem curtido no
seu pé, viu, formosa? Fica assim tristinha não. Mesmo sequinha tu é
a mais linda arruda desse terreiro todo. Não, não é verdade, eu
não cuido mais das rosas, cuido de tudo igualzinho aqui. Deixe de
falar besteira, deixe de ser ciumenta que eu não gosto desse tipo de
conversa”.
Não se
surpreendeu quando uma imagem apareceu no meio da névoa da manhã.
Desde
sempre via e ouvia espíritos. Herdara da avó essa capacidade, o
jeito com as plantas e a obrigação de cuidar dos santos e das
pessoas. Ver os mortos era como ver os vivos. Era tudo filho de Deus.
Sua avó
era negra africana, trazida à força pra o Brasil e se chamava
Bukola. Foi rebatizada como Benedita, em homenagem a São Benedito e
nunca aceitou seu nome cristão. Na África era uma sacerdotisa,
iniciada nos Mistérios, muito respeitada e temida. Conhecedora do
uso das ervas e dos pós mágicos, curava praticamente todos os males
do corpo e era muito boa pra dor de coração. Quando virou escrava
quase morreu de desgosto e saudade. Apanhou muito por causa de sua
resistência e teve o rosto todo cortado por chicote na tentativa de
conter sua natureza agressiva e rebelde. Foi colocada como matriz,
pra procriar mais escravos, e tirou do próprio ventre vários
filhos. Se recusava a servir a qualquer senhor dizendo que não era
bicho pra dar filho escravo. Mas quando engravidou da mãe de Divina,
que resistiu a todas as ervas aborteiras usadas, entendeu que aquela
criança deveria nascer. Por causa dela descobriu forças pra
continuar viva e aprendeu a ser mais discreta em sua luta. Sua filha
foi batizada como Rosa Maria mas Bukola a chamava de Chinyere,
presente de Deus. Nunca se esqueceu de sua
terra e dos filhos que deixou pra trás. Nunca se esqueceu dos seus
deuses e aprendeu a cultuá-los escondido, fazendo o Senhor acreditar
que ela estava rezando pros santos dos brancos. Morreu fugindo do
cativeiro, com quase cinquenta anos, sabendo que seria morte certa,
que o capitão do mato não a deixaria ir muito longe. Não tinha
medo da morte. Tinha medo de se acostumar com a prisão, de perder a
vontade de lutar. Então, em uma noite de lua escura, saiu da
senzala, se embrenhou na mata e foi em busca de sua liberdade. Quando
se despediu da filha e da neta, que era um bebê de colo, jurou que
nunca iria deixá-las desamparadas.
Quando
Divina tinha treze anos, já negra alforriada, Bukola apareceu para
ela em um sonho dizendo que ensinaria tudo que sabia porque a
tradição tinha que continuar. Ela era herdeira de um povo que
reconhecia a sabedoria de seres sagrados, divindades que podiam
conversar e orientar, amigos espirituais. Explicou que Divina tinha
nascido com o dom de ver e ouvir esses seres e ainda espíritos que
já tinham abandonado a vida, na forma da carne. Divina possuía
ouvidos, olhos e pele sensíveis, que reagiam às vibrações dos
outros planos espirituais.
Divina
viveu transitando entre os mundos dos vivos e dos não vivos,
recebendo informação direta de sua avó desencarnada mas,
principalmente, desses amigos espirituais que sempre a acompanhavam,
orientando e ensinando.
Havia
os anciões que sempre tinham uma palavra sábia e justa e Divina os
chamavam de vô e de vó e eram eles que consolavam suas tristezas
mais profundas. Havia os seus amigos, crianças como ela, que
normalmente apareciam tentando evitar que Divina se machucasse ou se
metesse em confusão braba. Normalmente chegavam em pequenos grupos e
brincavam juntos por muitas horas, sendo responsáveis por vários
atrasos e, consequentemente, broncas imensas onde Divina era acusada
de falta de atenção, lezêra, lombriguice desvairada, mania de
sonhar acordada e falta de vontade de trabalhar. Divina ouvia as
broncas e nem ligava. Muitas vezes riu alto, vendo, por de trás de
sua mãe, a doce Crispiniana, sua melhor amiga desencarnada, fazendo
micagens e imitações engraçadíssimas de sua pobre mãe que, não
vendo nada, achava que Divina era mesmo uma criança muito da
debochada. Apanhou muito por causa disso. Acredita até que suas
orelhas eram maiores do que o normal do tanto que elas foram puxadas!
Pulava do riso para o choro e algumas vezes quem vinha em seu socorro
era uma senhora muito bondosa, brilhante até, que pedia que tivesse
paciência, que um dia aquilo tudo passaria e ela entenderia melhor.
Gostava dessa senhora como quem gosta de uma professora muito amada e
ela se identificou como Dona Tetê.
Outras
vezes sentia a presença de seres que viviam nas matas, tão ariscos
que não se deixavam ver mas Divina aprendeu a ficar bem quietinha,
sem abrir os olhos, sem mexer um músculo sequer e eles, muito
lentamente, foram se aproximando até que um dia começaram a
conversar. Divina amava entrar na mata correndo, tentando acompanhar
seus amigos que pareciam flutuar e serem mais rápido que o
pensamento, perseguindo as borboletas e os passarinhos.
Nunca
se sentiu só, afinal sempre tinha companhia dessas visitas e amigos
não encarnados, mas sabia que não era exatamente como as outras
crianças e jovens e entendia porque a maioria das pessoas a evitava.
Ela era diferente.
Sua avó
só parou de se apresentar quando Divina fez a sua iniciação em um
terreiro de Candomblé, iniciação essa que foi longamente discutida
com seus amigos espirituais, já que Divina não se sentia à vontade
em virar sacerdotisa e não também não tinha um temperamento manso,
que aceitava tudo sem reclamar ou discutir. Muito tempo e trabalho
foram gastos até que Divina pudesse receber as bênçãos dos Orixás
africanos, honrando assim a sua linhagem espiritual e ganhando uma
insígnia sagrada que muito lhe serviria na sua caminhada. Sua
própria avó teve que interferir e vir pedir que seguisse o que lhe
pediam e, mais ainda, disse que dali em diante ela teria que confiar
na sua intuição, nas orientações dos amigos espirituais e que
deveria aprender a magia do povo branco e do povo vermelho, juntando
tudo em uma fé só porque tudo era sagrado.
E assim
Divina fez.
Euclides
brilhava em uma cor suave e sua imagem era meio fosca, mas
perfeitamente visível.
“Bom
dia, Divina! Tá bonito esse quintal, hein? Tudo colorido, que
beleza!”
Divina
sacudia a cabeça em aprovação e viu o amigo sentar no toco lado do
seu.
“Você
não é de se bandear pros lados de cá sem razão importante. O que
quer dessa velha aqui? Café eu sei que não é porque morto não
toma café. Pelo menos não desse aqui que eu to tomando. O que quer
de mim?”
Euclides
riu da forma direta e sem delicadeza de Vó Divina. Ela era fogo na
roupa, não tinha mesmo papas na língua!!
“É verdade, estou precisando de sua ajuda. Vamos mandar um jovem
pra perto de você e precisamos que passe a ele algumas informações
sobre a religião, sobre os mistérios, sobre a Arte. Precisamos que
oriente ele, cuide mesmo. Ele está sendo convocado pra assumir uma
grande obrigação e precisa de ajuda. Tem temperamento difícil, é
rebelde, meio desbocado, bem cabeça dura. Ou seja, parecidíssimo
com a sua pessoa. Vai assumir um terreiro de Umbanda quando ficar
adulto”.
“Sei.
E quando ele chega?”.
“Hoje”.
E nesse
instante adentra pela porteira do terreiro um moleque com uns nove
anos de idade correndo atrás de uma das galinhas boiadeiras que
cacarejavam loucamente acordando o dia de forma definitiva.
Vó
Divina se levanta do banquinho com dificuldade, olha pro menino que
parou assustado quando viu a preta velha e resmunga baixinho:
“Esse
povo não tem piedade de uma velha. Mesmo no fim da vida fica
mandando trabalho pra gente fazer. Afe Maria, e ainda mais um moleque
atentado desse. Só por Deus, viu. Ô, moleque filho de uma égua! Vá
correr atrás de outra galinha que essa aqui é a Genoveva! Se
assustar a bicha ela para de botar ovo! Mas será o benedito!”
Euclides
foi embora morrendo de rir do jeito “delicado” que Vó Divina
tinha. Sabia que ela faria um trabalho muito bom com aquele menino.
Não era o primeiro que era encaminhado pra ela, mas possivelmente
seria o último. Sorriu imaginando o tanto que aquele pobre menino
levaria de bronca, do tanto que seria corrigido. O método dela era o
antigo, sem muita conversa, sem moleza e seguindo à risca a
tradição. Funcionou por muitos anos. Deveria funcionar com ele
também.